Microplásticos contam histórias de águas do Mondego e de praias lá perto

Equipa de cientistas portugueses usou pequenos fragmentos de plástico como contadores de histórias ambientais do estuário do rio Mondego e de praias próximas.

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Fragmento de plástico encontrado em praias próximas do estuário do Mondego Filipa Bessa

A história que se segue poderia ser contada por um pequeno fragmento de plástico: era uma vez bactérias que faziam parte de um grande grupo chamado Firmicutes. Normalmente, costumavam ser encontradas em esgotos e águas residuais, mas, num certo dia de Inverno, foram descobertas em águas do estuário do rio Mondego em microplásticos. Foram cientistas que a desvendaram depois de terem recolhido plásticos nessas águas e de os terem analisado em laboratório.

A história que acabou de ser contada faz parte de um trabalho desenvolvido por cientistas portugueses que usaram pequenos fragmentos de plástico e microplásticos como contadores de histórias ambientais. No geral, a grande moral da história foi perceber que as comunidades de bactérias associadas aos plásticos recolhidos no estuário do Mondego e em praias lá perto eram diferentes das que estavam presentes aí naturalmente.

Através de respostas enviadas por email, José Marques conta ao PÚBLICO que o grande objectivo do trabalho foi analisar comunidades de bactérias que vivem em pequenos fragmentos de plástico (menos de 20 milímetros) e microplásticos (menos de cinco milímetros) em ambientais aquáticos de transição, como estuários e zonas costeiras. Isto é, a designada “plastisfera” – a comunidade bacteriana associada aos plásticos. José Marques fez o mestrado em ecologia na Universidade de Coimbra e concluiu-o com este trabalho.

Ao longo do Inverno de 2020, foram recolhidas amostras de água no estuário do rio Mondego e da área de praias adjacentes à foz desse rio. Depois, em laboratório, foram isolados fragmentos de plástico e microplásticos encontrados nas amostras. Nesse ambiente, extraiu-se material genético associado aos plásticos e às bactérias. Posteriormente, analisaram-se genomas das comunidades bacterianas e recorreu-se a técnicas de espectroscopia para se saber melhor qual era a natureza sintética dos plásticos para se saber se era, por exemplo, um poliéster ou um polietileno.

Foi assim que se obtiveram os resultados agora publicados na revista científica Science of the Total Environment, um artigo que tem como coordenadora Filipa Bessa, investigadora do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (Mare) da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra e uma das orientadoras do trabalho de mestrado de José Marques.

Fragmento de plástico recolhido numa praia próxima do estuário do Mondego Filipa Bessa
Fragmento de plástico recolhido numa praia próxima do estuário do Mondego Filipa Bessa
Fragmento de plástico recolhido numa praia próxima do estuário do Mondego Filipa Bessa
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Fragmento de plástico recolhido numa praia próxima do estuário do Mondego Filipa Bessa

No geral, verificou-se que as comunidades de bactérias associadas aos plásticos do Mondego e de praias lá perto eram diferentes das que são naturalmente encontradas nos ambientes aquáticos. Foram sobretudo detectadas estirpes bacterianas patogénicas, como a Lactococcus, a Staphylococcus e a Streptococcus, bem como grupos que normalmente são identificados em esgotos e águas residuais como os membros do filo Firmicutes. Também foram detectadas outras exclusivamente encontradas em ambientes marinhos. “[O estudo] pode indicar que estas partículas ‘vieram de outro lugar’ ou que chegaram há pouco tempo aos locais de recolhas de águas ou areias”, refere José Marques.

Há razões para dizer que os plásticos não contam sozinhos as suas histórias. Como têm uma dimensão bem pequena, muitas vezes é difícil de rastrear o seu percurso. Como tal, as bactérias são uma ajuda essencial. “As bactérias que colonizam a superfície dos pequenos fragmentos de plástico podem indicar-nos pistas sobre os percursos e até a sua proveniência”, salienta José Marques.

A origem e viagem dos plásticos

Através do seu estudo, há duas grandes histórias que podem ser contadas. Primeiro, a presença – exclusiva ou em grande abundância – de bactérias normalmente encontradas em esgotos e águas residuais nos microplásticos nas águas do estuário, o que pode indicar que, pelo menos, parte da emissão para o ambiente poderá ter sido feita por essas vias ao longo do percurso do rio.

A outra história diz-nos que a presença exclusiva em microplásticos de estuário de bactérias normalmente encontradas em ambientes marinhos, como as águas do mar, pode ter sido causada pelo transporte dessas partículas do mar para dentro do estuário. Isso pode ter contribuído de forma mais substancial para os níveis globais de contaminação por microplásticos nos estuários. “A plastisfera pode ser útil para desvendar a origem e a viagem dos plásticos nos ambientes aquáticos. Podem ser contadores de histórias ambientais, tais como ‘Diz-me que bactérias transporto e dir-te-ei de onde venho’”, compara o primeiro autor do estudo.

Fragmento de plástico recolhido no estuário do Mondego Filipa Bessa
Fragmento de plástico recolhido no estuário do Mondego Filipa Bessa
Fragmento de plástico recolhido no estuário do Mondego Filipa Bessa
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Fragmento de plástico recolhido no estuário do Mondego Filipa Bessa

E de que forma nos mostra este estudo se as águas em Portugal estão mais ou menos contaminadas? Filipa Bessa destaca que o estudo se foca em zonas de transição – terra-mar e rio-mar – e que estas são consideradas vias de transporte de muitos contaminantes até ao oceano. Têm sido vários os estudos a mostrar a presença de plásticos em praias e rios em Portugal, mas continua a questão dos potenciais efeitos ligados a essas partículas, refere a investigadora. Para tal, terão de ser feitas análises a esses plásticos e aos seus colonizadores. “Este foi o primeiro passo nesta área em Portugal, o que nos permitiu corroborar a ideia da omnipresença de microplásticos no ambiente, mas também concluir que as comunidades bacterianas colonizam plásticos que chegam aos rios e praias podem ser muito persistentes e percorrer longas distâncias”, esclarece a cientista. Desta forma pode compreender-se melhor a dinâmica dessas partículas no ambiente.

Por agora, os resultados deste trabalho confirmam que os estuários podem ser locais de acumulação de plásticos, através de diferentes frentes: a montante (do rio), provenientes do mar (com as marés) e lateralmente (margens com alta densidade populacional e lixo acumulado). Futuramente, pretende-se saber qual é o tempo de permanência das bactérias e plásticos para se conseguir avaliar os seus potenciais efeitos para os animais.