Atenção, caro futebol: os apanha-bolas já não são só apanha-bolas

Como sugeriu Sérgio Conceição após o FC-Porto-Inter, o apanha-bolas faz parte do jogo, agilizando ou adiando um ataque. Pede-se a estes jovens sagacidade e QI futebolístico.

Foto
O apanha-bolas de um Sporting-Inter de Milão MMM MIGUEL MADEIRA - PòBLICO

“Os nossos apanha-bolas não podem estar sentados aos 85 minutos e serem os nossos jogadores a irem buscar a bola”, criticou Sérgio Conceição, treinador do FC Porto, após o embate com o Inter na Liga dos Campeões. E foi mais longe: “Se tiver de ser eu a tratar disso, farei isso no futuro”.

Não ficou claro se era a ironia de sugerir que ia ele próprio apanhar as bolas ou se era, num registo sério, a promessa de que ia garantir que os apanha-bolas serão instruídos a serem mais competentes. Se for o segundo caso, Conceição estará apenas a entrar na onda do futebol moderno.

A função de apanha-bolas é historicamente uma tarefa menor no futebol. As “bocas” mordazes para provocar quem não tem talento dizem até coisas como “vai mas é para apanha-bolas” ou até mesmo “nem para apanha-bolas serves”. Nessa medida, acaba por ser uma função atribuída a quem, em nome da honra de estar junto aos craques, aceita a tarefa pro bono: os jovens jogadores do clube.

Mas que fique claro, caro futebol, os apanha-bolas já não são só apanha-bolas.

E se estivermos a ganhar?

No plano teórico, os apanha-bolas foram adicionados aos jogos de futebol para poupar os jogadores à tarefa de irem buscar as bolas que saem do terreno de jogo e, consequentemente, dar fluidez à partida – e num futebol tão preocupado com o tempo útil de jogo, a adição dos apanha-bolas, há muitas décadas, parece uma medida bastante à frente do seu tempo.

Recue até à primeira frase deste texto e leia a segunda palavra. Já está? É a palavra “nossos”. Conceição não teve pudor em usar essa palavra para se referir aos apanha-bolas. Mas eles são do FC Porto? Se analisarmos quem os colocou lá, sim. Mas durante aquela hora e meia de futebol deveriam ser levados pelo portismo? Em tese, não.

Se descontarmos os treinadores, os apanha-bolas são, provavelmente, os elementos extra-terreno de jogo que mais podem influir no desenrolar da partida. Como? São eles que, se forem sagazes e competentes, podem dar a bola a uma equipa que quer atacar rapidamente, para surpreender o adversário. Mas também são eles que podem impedir uma equipa de o fazer, retendo a bola nas suas mãos o tempo suficiente para o rival se recolocar.

Isto é um problema? Não tem de ser. Mas se for, então a resolução não é simples – pode ser regulada a obrigação de haver X apanha-bolas de cada equipa em redor do terreno de jogo. Ou então talvez se mantenha os apanha-bolas como uma vantagem de jogar em casa.

Numa fase em que o futebol está a retirar peso a essa vantagem – prova disso é o final dos golos fora como factor de desempate –, talvez o tema dos apanha-bolas surja em contraciclo.

Como o FC Porto queria marcar um golo ao Inter, Conceição teria aplaudido um apanha-bolas que desse rapidamente a bola aos portistas – e, para isso, estarem em pé e despertos para o jogo teria sido um bom começo.

Caso o FC Porto estivesse em vantagem, então não seria improvável vermos Conceição reclamar com um apanha-bolas que fosse célere a dar a bola a um jogador do Inter – seria, no jargão futebolístico, o chamado “anjinho”. Mas talvez fosse apenas uma criança a ser justa e competente no trabalho que lhe confiaram.

Mourinho quer apanha-bolas estudiosos

Lá fora, o tema dos apanha-bolas já é tratado com importância. Há vários casos de golos marcados com especial influência dos rapazes e raparigas que devolvem rapidamente a bola a um jogador – casos até no topo do futebol, como aquele em que Alexander-Arnold e Origi inventaram um golo rápido de canto, frente ao Barcelona, que começou, antes disso, com a rápida intervenção de um apanha-bolas.

Outro dos mais célebres foi Callum Hynes, o rapaz de 15 anos que José Mourinho quis colocar na berlinda, em 2019. O Tottenham marcou um golo de contra-ataque depois de um apanha-bolas, sagaz a ler o jogo, ter sido rápido a devolver a bola.

E Mourinho, ainda durante o jogo, foi abraçá-lo. “Adoro apanha-bolas inteligentes. Eu fui um apanha-bolas brilhante quando era miúdo. E este miúdo hoje foi brilhante também. Ele leu o jogo, entendeu o jogo e fez uma assistência importante. Está a viver o jogo e jogando-o muito bem”, apontou o português.

E foi mais longe: “Se queres um lançamento rápido, o apanha-bolas tem de saber que queres um lançamento rápido. Quando eu era apanha-bolas, eu até sabia onde é que os jogadores queriam a bola num canto, portanto eles nem precisavam de lhe tocar. Eu sabia que o jogador A, da minha equipa, queria a bola em determinada parte do semi-círculo. E sabia que o jogador B, por ser canhoto, a quereria noutra parte”.

Vejamos como Mourinho falou de o apanha-bolas ter feito uma assistência, de saber jogar o jogo muito bem e de ter de estudar os jogadores. É difícil fazer de um apanha-bolas algo mais importante do que isto. Talvez só mesmo convidando o rapaz para almoçar com a equipa e Mourinho também fez isso.

Também Pep Guardiola já chegou a falar mais do que uma vez da importância dos apanha-bolas e terá mesmo havido um episódio, em 2022, antes de um City-Atlético de Madrid, em que o espanhol gravou um vídeo com uma mensagem para os apanha-bolas.

Nesse vídeo, avança a imprensa inglesa, Guardiola terá mesmo dito aos jovens que iriam fazer parte de um “grande plano de jogo”.

E um vídeo sublime é aquele em que Guardiola, em 2017, durante o jogo, vai ter com um apanha-bolas, e com o braço por cima do ombro do rapaz, lhe dá instruções ao ouvido.

“Disse aos miúdos para terem calma”

Mas também há casos opostos. Já vários jogadores e treinadores mostraram a sua ira com apanha-bolas que propositadamente retardam o recomeço do jogo – Eden Hazard já chegou a ser expulso por isso.

Álvaro Magalhães, treinador português, chegou a dizer ao site Bancada, em 2017, que existe um lado estratégico. “Sobretudo na parte final dos jogos, se estava a ganhar, dizia muitas vezes ao meu adjunto para dizer aos miúdos para terem calma na reposição da bola em jogo", assumiu.

Álvaro não foi o primeiro nem terá seguramente sido o último a chamar estas crianças à malandrice. Até porque, segundo as Leis do Jogo, um treinador que retarde o recomeço de jogo da equipa adversária é expulso, mas, se for um apanha-bolas, pouco pode ser feito.

Talvez seja apenas a vantagem de jogar em casa e a liberdade dada às crianças de escolherem serem justas ou não.

Sugerir correcção
Ler 5 comentários