As obras no Claustro da Sé de Lisboa e o valor da verdade
A Direcção-Geral do Património Cultural imputa aos arqueólogos elevados danos no erário público. Mas se em 2018 a tutela tivesse revisto correctamente o projecto, ter-se-ia poupado tempo e dinheiro.
Desde que a contestação ao projecto em curso no Claustro da Sé de Lisboa se intensificou, em 2019, a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) escolheu a mentira como validação. Muito se tem mentido! Afirmou-se que os arqueólogos não esperavam encontrar contextos arqueológicos; esperavam, como afirmaram as arqueólogas responsáveis em 2015, no lançamento do projecto. Defendeu-se que as estruturas arqueológicas não eram classificadas; são Monumento Nacional, como admitiu o próprio director-geral do Património Cultural no Parlamento, em Outubro passado. A DGPC garante que as estruturas arqueológicas foram integralmente preservadas, com duas revisões de projecto. Duplamente falso: a DGPC nunca “decidiu” rever o projecto, foi obrigada a fazê-lo; e este, ainda assim, provocou fortes destruições nas ruínas e no claustro. Os pareceres do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) não eram confidenciais e a lei não só permite como impõe a consulta do projecto por qualquer interessado. Foi a DGPC que decidiu escondê-los, impedindo o seu acesso a órgãos de soberania, associações e cidadãos.
Mentira chave: a principal preocupação da DGPC é a estabilidade do claustro, nomeadamente em caso de sismo. Era bonito, mas não é verdade. O LNEC e um parecer independente concluíram que o projecto não garantia condições aceitáveis de segurança em caso de sismo e esclarecem que a construção de um piso sob o claustro é uma opção e não um elemento estrutural. A preservação do fabuloso compartimento de bancos ornamentados com arcos não colocava em risco o claustro nem pessoas; a DGPC queria aí instalar uma caixa de AVAC!
Recentemente, a DGPC imputou aos arqueólogos e ao próprio património arqueológico elevadíssimos danos no erário público! Segundo a DGPC, o custo da obra, inicialmente de 4,1 milhões de euros, situa-se agora em 6,5 milhões, devido ao acordo judicial com o empreiteiro por atrasos e escavações arqueológicas a mais. Mas quais escavações arqueológicas a mais? Não se escavou mais do que o previsto, mas sim menos!
A obra começou em Fevereiro de 2018, e, em Setembro do mesmo ano, foi identificado o edifício islâmico, que as arqueólogas recusaram destruir. Só cinco meses depois a DGPC acedeu a rever o projecto, o que demorou sete meses. Esta segunda versão era quase tão destrutiva quanto a primeira. Durante um ano, a obra prossegue, lenta, até que, em Setembro de 2020, a DGPC ordena a destruição das ruínas islâmicas, gerando forte contestação pública. Em resposta, a ministra Graça Fonseca impõe nova revisão de projecto, que desta vez demorou um ano. Só em Novembro de 2021 a DGPC apresenta a terceira versão do projecto, tendo as obras recomeçado em Março de 2022. Com um interregno de ano e meio entre a decisão de rever o projecto e o recomeço da obra, era impossível não a interromper e indemnizar o empreiteiro. Que responsabilidade têm os arqueólogos neste impasse?
Logo em 2018 o projecto deveria ter sido correctamente revisto, em função do incontornável valor patrimonial das ruínas islâmicas então identificadas. A DGPC devia ter decidido que a cripta arqueológica TINHA de ficar livre de qualquer construção. Tempo e dinheiro teriam sido poupados e, principalmente tinha-se ganhado o valor imenso do usufruto do património. Mas, inexplicavelmente, a opção (obsessão) foi cumprir o projecto, destruindo e ocultando património de todos e que nos foi roubado.
Entre impasses e (lentas) revisões, o atraso é de quatro anos e dois meses e a derrapagem orçamental de 2,4 milhões de euros. A responsabilidade é da DGPC, da sua incompetência e incapacidade de proteger o património cultural e de gerir uma obra patrimonialmente complexa.
Aparente e surpreendentemente, é tolerável que um alto dirigente do Estado minta (embora não se possa chamar-lhe mentiroso). Mas neste caso, para além de mentiras, abundam ilegalidades e irregularidades. Veremos o efeito das participações apresentadas às entidades competentes. Vivemos tempos difíceis, em que é aceitável que um palco custe milhões, apenas por ostentação e gabarolice, em que o abuso sexual de menores é considerado desculpável por alguns, em que há quem lucre, literalmente, com a fome de tantos.
A destruição e a ocultação sob betão de fantásticas ruínas com mais de mil anos, pela mão do Estado, com apoio do Governo e acordo do Patriarcado de Lisboa, parece pouco. Mas não é! É uma perda irreversível para todos e para os que virão, e é mais uma manifestação da profunda degradação social, cultural e moral em que estamos mergulhados!