Indústria do colagénio contribui para desflorestação no Brasil

Multinacional Nestlé compra colagénio oriundo de gado criado em zonas desflorestadas do Brasil, denuncia consórcio. Desflorestação na Amazónia em Fevereiro foi a maior de sempre para o mês homólogo.

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Imagens espaciais mostram que a destruição da floresta amazónica brasileira aumentou, em Fevereiro, para o nível mais alto alguma vez registado UESLEI MARCELINO/REUTERS

A multinacional suíça Nestlé compra colagénio oriundo de gado bovino criado em zonas desflorestadas do Brasil, denuncia uma investigação jornalística realizada por um consórcio que inclui o diário britânico The Guardian. Esta proteína de origem animal é usada em suplementos alimentares que prometem benefícios estéticos e para a saúde.

“As ligações entre a carne bovina, a soja e a desflorestação no Brasil são bem conhecidas, mas pouca atenção tem sido dispensada à florescente indústria do colagénio, estimada em cerca de quatro mil milhões de dólares [3,7 mil milhões de euros]”, lê-se num artigo do jornal The Guardian.

Os jornalistas afirmam ter conseguido traçar o caminho feito por parte do colagénio brasileiro até à multinacional suíça Nestlé, responsável pela comercialização da proteína sob a marca Vital Proteins. Os produtos são, referem, “um fenómeno de vendas” promovido pela actriz Jennifer Aniston, que actua também como directora criativa da empresa. Estão à venda em diferentes lojas internacionais e farmácias online por valores superiores a 70 euros por quilo.

O colagénio é uma proteína produzida por animais, e que faz parte da cartilagem articular e pele dos mamíferos. Assim, os suplementos que contêm colagénio são obtidos sobretudo através da pecuária, e especialmente de gado bovino. Nos últimos anos, o consumo de suplementos com colagénio tem sido associado pela indústria alimentar a uma redução dos sinais do envelhecimento, nomeadamente no que diz respeito à redução das rugas, flacidez e perda de elasticidade”, explica ao PÚBLICO a farmacêutica Marta Ferreira, doutoranda em ciências farmacêuticas, numa resposta enviada por e-mail.

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Os suplementos alimentares com colágeno costumam ser vendidos em pó ou em cápsulas Howtogym/DR

Da pecuária aos suplementos

O consórcio revela que “dezenas de milhares de cabeças de gado”, criadas em propriedades ligadas à desflorestação tanto da Amazónia como do Cerrado, “foram abatidas” em grandes empresas do sector da carne que, por sua vez, estão “ligadas à cadeia internacional” de colagénio. Além do Guardian, o consórcio é composto pelos seguintes órgãos de comunicação social: a rede televisiva britânica ITV, The Bureau of Investigative Journalism e O Joio e o Trigo.

A investigação, que resulta de uma parceria com o Centro para a Análise do Crime Climático, identificou pelo menos 2600 quilómetros quadrados de desflorestação associados à cadeia de abastecimento de duas empresas sediadas no Brasil e ligadas à norte-americana Darling Ingredients. Contactada pelos jornalistas do consórcio, a Darling Ingredients afirmou que verifica os fornecedores e descarta “aqueles que não atendem aos critérios de fornecimento responsável”.

“Ainda não está claro o percentual exacto de colagénio produzido no Brasil e destinado à Vital Proteins. O que se sabe é que a Nestlé, e sua marca Vital Proteins, compram colágeno da Darling Ingredients, cuja empresa no Brasil, a Rousselot, compra parte de sua matéria-prima da Marfrig [o segundo maior produtor de carnes do Brasil]”, lê-se no artigo do consórcio publicado em O Joio e o Trigo.

O consórcio jornalístico refere que a Nestlé afirmou que vai contactar os fornecedores para averiguar, uma vez as alegações feitas na reportagem não condizem com o compromisso que a empresa diz ter no que toca a uma cadeia de abastecimento responsável. A multinacional suíça acrescentou que está a tomar as medidas necessárias para garantir que até 2025 os seus produtos são livres de desflorestação.

Desflorestação aumentou em Fevereiro

A reportagem investigativa foi publicada menos de uma semana antes de ser divulgada informação oficial relativa à desflorestação no Brasil. As imagens espaciais mais recentes mostram que a destruição da floresta amazónica brasileira aumentou, em Fevereiro, para o nível mais alto alguma vez registado para o mês, refere a agência Reuters.

Os dados oficiais, divulgados esta sexta-feira, reiteram o enorme desafio que o novo governo terá de enfrentar para cumprir as promessas de campanha. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o cargo no início de Janeiro, prometendo acabar com a extracção ilegal de madeira após um aumento vertiginoso da desflorestação durante o governo anterior, liderado por Jair Bolsonaro.

“Acabamos de deixar para trás um governo que apoiava o desmatamento”, disse à Reuters o porta-voz do Greenpeace Brasil, Rômulo Batista, esta sexta-feira.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE) mostram que 322 quilómetros quadrados de vegetação foram destruídos na região no mês passado. Isto significa um aumento de 62% em relação a Fevereiro de 2022, bem acima da média de 166 quilómetros quadrados no período. Também foi a maior desde o início da série de dados do INPE, que teve início em 2015.

A Reuters refere ainda que, por agora, os dados existentes são limitados para indicar se as políticas de conservação prometidas por Lula estão ou não a funcionar. Especialistas e autoridades ambientais já avisaram que serão necessários anos para reduzir significativamente a desflorestação após os cortes de financiamento e recursos levados a cabo por Bolsonaro.