Estamos a treinar os futuros médicos para tratar as “doenças do clima”?

Os estudantes de Medicina da Universidade de Harvard vão passar a ter conteúdos sobre alterações climáticas no currículo. E, em Portugal, o clima já faz parte da formação dos profissionais de saúde?

Foto
O Conselho Português para a Saúde e o Ambiente vai fazer um apelo às instituições de ensino para que incluam a mudança do clima nos currículos Manuel Roberto

Os estudantes de Medicina da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, vão passar a ter conteúdos sobre alterações climáticas inseridos em múltiplas disciplinas, ao longo dos quatro anos do curso. Harvard junta-se assim a mais de 80 outras universidades americanas que, talvez de forma mais tímida, ou menos estruturada, já ensinavam aos futuros médicos os efeitos da mudança do clima na saúde humana. E em Portugal? Será que a crise climática já faz parte da formação dos profissionais de saúde?

“Há um longuíssimo caminho a percorrer em Portugal. Estes temas têm sido sistematicamente ignorados em todos os cursos de saúde – e não apenas no de Medicina. É importante que todos os profissionais estejam sensibilizados para a questão climática. Está ainda tudo por fazer por aqui”, afirma ao PÚBLICO o médico internista Luís Campos, presidente do Conselho Português para a Saúde e Ambiente (CPSA).

O CPSA é uma associação sem fins lucrativos, criada em Outubro de 2022, que agrega mais de 50 organizações ligadas à saúde em torno de objectivos comuns. Um deles é a redução da pegada ecológica do sector da saúde, actualmente responsável por 4,8% da emissão de gases com efeito de estufa em Portugal. Outro prende-se precisamente com a formação dos futuros profissionais de saúde.

“O que está nos nossos objectivos é que essa matéria [as alterações climáticas] seja estendida ao ensino pré e pós-graduado. Estamos precisamente a elaborar um apelo a todas as instituições ligadas ao ensino da saúde para que o façam, com a autoridade de já representarmos 52 organizações, incluindo instituições académicas”, refere Luís Campos.

O apelo do CPSA está em consonância com as recomendações de diferentes entidades internacionais, que não se cansam de frisar que a emergência climática é uma questão de saúde pública. Uma delas é a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), que estima que, entre 2030 e 2050, a mudança do clima provocará 250 mil mortes adicionais por ano como consequência de questões como a insegurança alimentar, a diarreia, a malária e as ondas de calor.

Alice Bell, responsável pela área do clima e da saúde na organização britânica Wellcome Trust, afirma que todo o sector da saúde “está a mudar” e deverá ficar “radicalmente diferente na próxima década”, à medida que a temperatura do planeta sobe. “Todos os que trabalham na área da saúde têm de estar preparados para isso”, afirma por e-mail ao PÚBLICO. E esta preparação passa, claro está, pela forma como ensinamos os futuros profissionais de saúde.

Porto, Coimbra e Lisboa

Em Portugal, as faculdades de Medicina abordam o tema em uma ou mais disciplinas, mas não existe ainda uma unidade curricular inteiramente dedicada às alterações climáticas. Falta ainda uma abordagem transversal, que perpasse todo o currículo, acredita Luís Campos, a exemplo do que a Universidade de Harvard promete fazer a partir desta Primavera.

“Não há uma disciplina especificamente dedicada à crise climática e ao ambiente na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. No entanto, no contexto da área disciplinar de Saúde Pública, esta temática é abordada. Conceitos como one health [uma só saúde, em português] e emergências climáticas são ensinados”, afirma ao PÚBLICO João Cabral da Fonseca, director da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, numa resposta enviada por e-mail.

O conceito one health consiste na ideia de que a saúde das pessoas, do planeta e dos animais está interligada, formando “uma só saúde”. O termo terá sido usado pela primeira vez em 2003, num artigo publicado pelo cientista norte-americano William Karesh no jornal Washington Post. Ao longo dos últimos 20 anos, o conceito tornou-se comum quando falamos de saúde planetária e crise climática.

Foto
As alterações climáticas estão a apresentar novos desafios aos profissionais de saúde Evg Kowalievska/DR

A exemplo de Lisboa, as universidades do Porto e de Coimbra não apresentam uma disciplina especificamente dedicada à crise climática nos cursos pré-graduados de Medicina. O mesmo acontece com o novo curso da Universidade Católica, criado em 2021. Isto não significa, contudo, que o conteúdo não seja abordado em determinadas aulas ou mestrados. A Católica, por exemplo, garante que a temática está “integrada nos diversos módulos que são leccionados ao longo dos seis anos”.

A Universidade de Coimbra oferece actualmente, no Mestrado Integrado em Medicina, uma unidade curricular opcional que inclui duas aulas sobre saúde global. No mesmo curso, na área da pneumologia, por exemplo, “o Professor António Jorge Ferreira aborda, especificamente numa aula, o tema da interface entre a patologia respiratória e o ambiente”, refere o departamento de comunicação da entidade, numa resposta enviada por e-mail. A Universidade do Porto oferece mestrados semelhantes que também cobrem estes temas.

O Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), por sua vez, considera que “ocupa um espaço único em Portugal, ao integrar as três áreas base do conceito de uma saúde (saúde humana, animal e ambiental), tanto em termos de ensino como de investigação”, segundo a página da faculdade da Universidade do Porto. Desde 2021, o ICBAS comemora o dia de “uma só saúde”.

Não estão previstas revisões curriculares ao nível pré-graduado nas faculdades de Medicina de Coimbra ou Lisboa. “Não há processos de revisões curriculares em curso”, refere uma resposta enviada ao PÚBLICO pela Reitoria da Universidade de Coimbra, ainda que as temáticas ligadas à intersecção entre as esferas do clima e da saúde façam parte das “preocupações dos decisores curriculares”. O PÚBLICO questionou a Reitoria da Universidade do Porto sobre a possibilidade de alterações, mas não obteve resposta.

“As instituições de ensino em Portugal não têm a flexibilidade necessária para se adaptar à rapidez com que as coisas estão a mudar. Há uma certa décalage entre as necessidades educacionais e a evolução da realidade. Nas alterações climáticas, estamos a meter a cabeça na areia, como fazem as avestruzes”, lamenta o médico Luís Campos, numa conversa telefónica com o PÚBLICO.

Qual é o melhor modelo?

Como podem os estabelecimentos de ensino superior absorver os conteúdos relacionados com a crise climática? Deverão criar uma única disciplina dedicada ao tema, cobrindo não só os efeitos do clima na saúde humana, mas também abordando a mitigação e adaptação climática? Devem tentar distribuir as informações pelas diferentes unidades curriculares? Ou fazem as duas coisas?

Luís Campos defende não só a criação de uma cadeira específica que se debruce sobre a crise climática, mas também a adopção de uma perspectiva transversal que possa, de alguma forma, ser incorporada na maioria das disciplinas. “Quase todas as patologias têm uma componente ambiental – e essa componente vai ser cada vez mais intensa”, refere o presidente do CPSA.

Da cardiopatia isquémica ao cancro, passando pela asma, pelas doenças infecciosas ou pela poluição química, é bastante longa a lista de doenças ou condições de saúde que são afectadas pelo clima. Isto sem falar nas vítimas directas de episódios climáticos extremos como ondas de calor, cheias e secas severas, por exemplo.

O efeito destes acontecimentos extremos afecta a saúde humana de diversas formas e, muitas vezes, de forma prolongada. Os quadros de insegurança alimentar e de desnutrição que se seguem a um longo período de seca hidrológica são um exemplo disso. O mesmo vale para a saúde mental, que é tão afectada pela crise climática como a saúde física, recordava uma nota prática da OMS divulgada em 2022.

“A mudança climática deve ser integrada em tudo o que diga respeito à saúde, e não apenas um seminário aqui e ali sobre ondas de calor ou hospitais neutros em emissões”, defende Alice Bell.

Para esta responsável da Wellcome Trust, as faculdades devem ensinar conteúdos sobre os desafios relacionados com o clima que os alunos terão de enfrentar quando começarem a exercer a profissão. Mais: devem também apoiar investigação sobre a melhor forma de prevenir e tratar estes problemas de saúde.

“A mudança climática aumenta os riscos de certas condições e doenças e também apresenta complicações para os médicos – por exemplo, os efeitos colaterais de alguns medicamentos são mais pronunciados durante uma onda de calor. Portanto, faz todo o sentido que uma escola de Medicina inclua estes temas no currículo”, afirma Alice Bell.

Além disso, é importante refrescar os conhecimentos de profissionais de saúde que já obtiveram o diploma. A Escola Nacional de Saúde Pública, da Universidade Nova de Lisboa, ofereceu de 9 a 30 de Janeiro, um curso online de curta duração intitulado Alterações Climáticas e Saúde Pública que visava justamente “aprofundar” os conhecimentos dos profissionais ou licenciados nas área da saúde ou ambiente.

A escolha de Harvard

No caso da Universidade de Harvard, optou-se por não se criar novas unidades curriculares. Um grupo de trabalho que incluía estudantes avaliou, durante um ano, quais eram as informações relevantes a transmitir e em quais das múltiplas disciplinas do curso poderiam ser encaixadas.

“Gostamos de uma abordagem longitudinal, na qual aplicamos uma ‘lente’ climática em toda a Faculdade de Medicina. Compreender os impactos das mudanças climáticas na saúde é uma prática, por isso queremos abordar essa questão a partir de vários ângulos e abordagens curriculares”, explica ao PÚBLICO o médico e docente Gaurab Basu, que dirigiu o projecto de revisão do currículo da Escola de Medicina de Harvard.

Madeleine Kline, estudante do terceiro ano que integrou o grupo de trabalho, acredita que esta é a melhor abordagem porque “enfatiza para os alunos que a mudança climática está intimamente relacionada à fisiologia das pessoas, aos processos de doenças e aos sistemas de saúde sobre os quais eles estão a aprender”.

“O maior desafio é encontrar espaço e tempo para incluir conteúdos relacionados ao clima num currículo que já está estourando pelas costuras. Há tantas, tantas informações pelas quais os alunos de Medicina têm de se responsabilizar é por isso que tentamos optar por uma abordagem que lance um olhar climático sobre todo o conteúdo que os alunos já estão a aprender”, afirma Madeleine Kline ao PÚBLICO. ​

As alterações, anunciadas em Janeiro, prevêem não só o estudo dos efeitos das alterações climáticas na saúde, mas também da forma como os sistemas de saúde contribuem para a crise climática e de como os médicos podem tentar ser parte da solução. Harvard junta-se assim a tantas outras faculdades americanas que já estão hoje a treinar os futuros médicos à luz dos desafios climáticos actuais.

Um estudo da Associação Americana de Escolas de Medicina, divulgado em Novembro de 2022, indica que, em apenas três anos, quase dobrou o número de faculdades que considera as alterações climáticas no currículo – passou de 27% em 2019 para 55% em 2022. Actualmente, 86 das 155 escolas de Medicina no país adaptaram o currículo às alterações climáticas.

“Todos nós sentimos urgência em abordar a mudança climática e esse é um assunto com o qual os alunos se preocupam muito. Acreditamos que todas as faculdades de Medicina do mundo devem considerar a incorporação do currículo climático”, recomenda Gaurab Basu, numa resposta enviada por e-mail.

Luís Campos não poderia estar mais de acordo. “É fundamental que estas temáticas entrem na formação dos profissionais de saúde em Portugal o mais rapidamente possível. Este é, sem dúvida, o desafio mais importante que temos pela frente no futuro dos cuidados de saúde”, conclui.

O médico internista reconhece a “complexidade” das questões climáticas e admite que possa ser “um pouco assustador” para um estabelecimento de ensino incorporar, no ritmo estonteante em que a crise do clima avança, todas as mudanças necessárias. Mas, assegura Luís Campos, a emergência climática que atravessamos assim o exige.

“As mudanças estão a ser muito lentas. Estamos a formar os médicos do futuro – mas primeiro temos de assegurar o futuro das pessoas. Estamos de forma egoísta a assegurar o nosso bem-estar e a negligenciar o futuro dos nossos filhos e netos”, remata.