“São os brasileiros”

Se o retrato social da Ericeira pode representar o presente e o futuro de Portugal, é preciso falar da maior comunidade de estrangeiros no país.

Os carros queimados na Ericeira em fevereiro não eram o foco desta reportagem, mas serviram de gatilho para analisar o que ocorria numa vila com “alma portuguesa” que atrai pessoas do mundo inteiro. Na análise da realidade social, complexa como uma colcha de retalhos, ouvia-se “são os brasileiros” como resposta imediata ao ocorrido na Ericeira. Como se, ao associar uma nacionalidade ao problema, toda a complexidade pudesse ser simplificada.

“Os brasileiros” em Portugal têm sofrido um preconceito invisível, silencioso e difícil de admitir que transpira no cotidiano sem deixar evidências. Pode ser mais explícito contra a “brasileira” ou camuflado com elogios à simpatia do “brasileiro”, se a simpatia for lucrativa para quem o contrata.

No meio da Mata Atlântica, a franja do mar que nos une, um índio ensinou-me que, “quando estamos perdidos, devemos voltar atrás e pisar as pegadas que deixámos no caminho até à nossa origem”.

Se viessem a Portugal para encontrar a sua origem, os brasileiros se perderiam no emaranhado de conceitos criados sobre eles que afetam a sua vida pública e privada. Em processos de recrutamento que excluem perfis com “um português” que não seja o nacional; numa escola que corrige o sotaque que não seja o português; numa reunião que desconsidera uma opinião quando é de brasileiros; um arrendamento que só está disponível para não brasileiros; da vergonha que sentem portugueses de tornar pública uma relação afetiva com um brasileiro; da autoria de crimes sempre alardeados com a nacionalidade brasileira; dos gerúndios convertidos em piada: o preconceito está em cada esquina onde se corrige os “centavos” quando é dito por um brasileiro enquanto não se importam de aprender a dizer “cents” quando é dito por quem quer comprar a “alma portuguesa”.

Para desvendar esse preconceito com os brasileiros, não é preciso retroceder no tempo até ao retorno das Rascas que saíram da Ericeira para o Brasil. Deixemos de fazer terapias com o passado colonial para ter tempo de analisar o presente e corrigi-lo.

A formação do estigma do “brasileiro” na sociedade portuguesa contemporânea tem influência dos estereótipos criados pelas telenovelas e é marcada por contextos socioeconómicos dos quais o Brasil e Portugal são cúmplices.

A partir dos anos 80, quando a imagem vendida do Brasil no exterior ainda era a do “país do carnaval das mulatas e do futebol”, brasileiros cruzaram o Atlântico acreditando nas promessas de organizações de tráfico de pessoas para o trabalho sexual. Desde então, a identidade social do brasileiro ficou marcada por “um corpo sexualizado”. No início do século XXI, chegaram a Portugal brasileiros de baixa renda que não tiveram acesso à formação superior, mas a oportunidade de viajar pela primeira vez ao exterior. Estes brasileiros eram mão de obra barata que viviam em guetos e alimentavam narrativas mediáticas sobre o crime organizado que banalizam a associação da violência à pobreza e à falta de educação. Na última década, vieram os brasileiros privilegiados sem inquietações socioculturais e a querer fugir das razões para a violência no Brasil. Na mesma vaga migratória, embarcaram os brasileiros de classe média com inquietações socioculturais a fugir de uma situação política que consideravam asfixiante.

Todas as razões para emigrar, dos que buscavam melhores condições financeiras, fugiam da violência ou da asfixia política, têm a sua origem na desigualdade social.

Ao analisar a queima dos carros na Ericeira, a opinião popular sobre “os brasileiros” e sobre o aumento da vigilância como solução para a violência evidenciava uma cumplicidade trágica: começava a ser reproduzida em Portugal a desigualdade social e as suas consequências que motivaram a fuga do Brasil.

Sem a necessidade de incluir um perfil “brasileiro” para contar o que estava a acontecer na Ericeira, o contexto social da vila revelou o que une brasileiros e portugueses: somos capazes de vender e comprar as nossas identidades culturais quando não encontramos saída para crescer. Depois de vendidas as almas, somos capazes de fugir e desbravar novos mundos para voltar a construí-la.

O preconceito é um espelho. Os brasileiros enquanto reflexo dos portugueses revelam a negação de uma imperfeição que é de ambos. Ao vender por “cents” a alma de uma identidade cultural que não devia ter preço, brasileiros e portugueses estiveram e estarão sempre condenados a recomeçar.

Jornalista de nacionalidade espanhola e brasileira, gestora de projectos e doutoranda em Artes e Humanidades com investigação sobre Inclusão da Deficiência. A autora escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico

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