Hoje, o custo de vida é o maior risco social; daqui a dez anos será o clima

Direitos sociais, económicos e de desenvolvimento são prioridades identificadas por António Guterres para 2023. Quando o foco é a próxima década, os maiores riscos têm que ver com o ambiente.

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A inflação pode ser persistente durante os próximos dois anos, diz relatório do Fundo Económico Mundial Nelson Garrido

As várias pressões que as alterações climáticas estão a impor já sobre a sociedade contribuíram para que o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, considerasse a “transformação radical da estrutura financeira global” uma das suas sete prioridades para 2023. A curto prazo, para os próximos dois anos, a crise do custo de vida está no topo da tabela dos riscos identificados pelo Fórum Económico Mundial.

Para cumprir os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável até 2030, é preciso “pôr as necessidades prementes dos países em desenvolvimento no centro de cada decisão e mecanismo do sistema financeiro global”, disse António Guterres, numa declaração a 8 de Março, em que identificou as sete prioridades da ONU para 2023.

A primeira diz respeito ao direito à paz (ver caixa no final do artigo), mas em segundo lugar vêm os direitos sociais e económicos e o direito ao desenvolvimento. O secretário-geral da ONU apelou a um “novo momento Bretton Woods”, referindo-se a 1944, quando delegados de 44 países se encontraram nos Estados Unidos para criar um novo sistema monetário internacional – o sistema Bretton Woods – para ajudar na reconstrução pós-Segunda Guerra Mundial. Foi então que se criaram o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

Hoje, estas instituições são criticadas por darem cada vez menos resposta às necessidades dos países em desenvolvimento, principalmente face aos desafios impostos pelas alterações climáticas.

Crises interconectadas: a policrise

O Fórum Económico Mundial usa o termo “policrise” para descrever a cascata de crises interconectadas em que nos encontramos neste início de 2023. “O foco colectivo do mundo está a ser canalizado para a ‘sobrevivência’ às crises actuais: custo de vida, polarização social e política, abastecimento de energia e alimentação, crescimento económico morno e confrontos geopolíticos, entre outros factores”, escreveu Saadia Zahidi, editora executiva do Relatório sobre os Riscos Globais de 2023, lançado em Janeiro.

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Se estes riscos podem parecer o regresso de problemas que afectaram gerações anteriores, ao mesmo tempo, estão a emergir, ou a acelerar, novos riscos para os sistemas naturais, bem como a saúde humana, segurança, direitos digitais e estabilidade económica. “Podem tornar-se crises e catástrofes na próxima década”, salientava Saadia Zahidi.

A crise do custo de vida está no topo da lista dos riscos para os próximos dois anos identificados por 1200 especialistas vindos da academia, do mundo dos negócios e da sociedade civil consultados para a elaboração deste relatório. Mas a maioria prevê que as economias evoluirão com uma grande volatilidade, não só nos próximos dois anos como na próxima década, com múltiplos choques.

A dois anos, o risco alinhado em segundo lugar (ver tabela neste artigo) é o de desastres naturais e fenómenos meteorológicos extremos. Nestas previsões a curto prazo, os riscos da economia, do conflito e dos seus impactos na sociedade vão alternando com aqueles que têm que ver com o clima e a perda da natureza.

Mas, se a avaliação for feita para a década, os cinco riscos no topo da tabela podem ser relacionados com as alterações climáticas ou perda da natureza: fracasso em mitigar efeitos das alterações climáticas; fracasso da adaptação às alterações climáticas; desastres naturais e fenómenos meteorológicos extremos; perda da biodiversidade e colapso dos ecossistemas; migrações involuntárias de grande escala e crise dos recursos naturais.

Nos próximos dois anos, as pressões económicas serão enormes. “Os governos e bancos centrais podem enfrentar pressões inflacionárias persistentes durante os próximos dois anos, e um factor importante é o potencial para uma guerra prolongada na Ucrânia”, escrevem os autores do relatório, na sua análise a dois anos. A existência de confrontos geoeconómicos é também um risco significativo (vem em terceiro lugar).

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Cheias na Nigéria: há um grande risco de desastres naturais e fenómenos meteorológicos extremos, tanto a dois como a dez anos Temilade Adelaja/REUTERS

“O fim da era das taxas de juro baixas terá ramificações significativas para governos, empresas e indivíduos. E os efeitos serão sentidos de forma mais aguda pelas partes mais vulneráveis da sociedade e Estados que já são frágeis”, lê-se na análise do relatório. Aumento da pobreza, protestos violentos, instabilidade política e até colapso de Estados são cenários possíveis para os próximos dois anos.

Além do aumento da desigualdade: “A nova era económica será de uma divergência cada vez mais alargada entre países ricos e pobres e a primeira redução no crescimento do desenvolvimento humano em várias décadas.”

Pessimismo para o clima

Quando o foco da análise é a próxima década, a percepção é que os maiores riscos têm que ver com o ambiente, e que estes são também os riscos para os quais estamos menos preparados, diz o relatório do Fórum Económico Mundial. “A falta de concertação para um progresso aprofundado nas metas climáticas expôs a divergência entre o que é necessário, cientificamente, para alcançar a neutralidade carbónica, e o que é politicamente possível”, lê-se.

Impera o pessimismo: é de esperar que outras crises deverão continuar a sugar recursos que seriam necessários para a redução das emissões de gases com efeito de estufa, e que o apoio à adaptação aos efeitos das alterações climáticas prestado aos países mais vulneráveis – como o acordo para um fundo de perdas e danos estabelecido na última Cimeira do Clima (COP27) – seja insuficiente, dizem ainda os analistas.

As sete prioridades das Nações Unidas traçadas por António Guterres para 2023 reflectem alguns desses riscos. Fala, por exemplo, no direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável: “Temos de acabar com a guerra implacável, sem misericórdia e sem sentido que fazemos contra a natureza”, disse o secretário-geral das Nações Unidas ao apresentar estas prioridades esta semana.

Temos de defender os direitos das gerações futuras, e os governos devem ser chamados à responsabilidade. Isto passa, disse António Guterres, por “fazer as pazes com a natureza, garantir um futuro digital livre, aberto e inclusivo para todos, eliminar as armas de destruição maciça e construir uma governação mais inclusiva”.