Marcelo: “Não me peçam para dizer que renuncio ao poder de dissolver”
Presidente vai bater-se para que Governo cumpra legislatura. Mas uma desgraçada execução do PRR e uma desgraçada situação económica e social podem levá-lo a “repensar a realidade”.
Em entrevista ao PÚBLICO e à RTP, o Presidente da República convoca os seus créditos como factor de estabilidade desde os primórdios do seu primeiro mandato: continuará a fazer tudo para que o Governo chegue ao final da legislatura. Mas Marcelo Rebelo de Sousa deixa avisos sérios de que não defenderá essa tese a qualquer custo. Apesar do princípio, continua a ver fragilidades na alternativa à direita.
Numa sondagem da Católica para o PÚBLICO e para a RTP, a maioria dos portugueses considerava que o desempenho do Governo era mau, mas mesmo sendo mau, 70% queriam que continuasse até ao final do mandato. Como é que interpreta esta aparente contradição?
Todas as sondagens que conheço dizem isso mesmo. Fazem um juízo crescentemente negativo em relação ao Governo, mas dizendo que tem de ir até ao fim.
Esse é o seu juízo também?
Sempre defendi o cumprimento de legislaturas. Quando arranquei para a primeira, em 2016, ela tinha começado em 2015 e era para ir até 2019. Quando começou a de 2019, a minha intenção era que fosse até 2023. Não foi, por razões que todos conhecem. Quando começou esta, fui muito claro a dizer que isto é para durar estes quatro anos e meio, o que é um bocadinho mais longo do que o habitual. E até preveni: "Atenção, senhor primeiro-ministro, se pensa que sai a meio do caminho — eu não o disse, mas estava implícito —, aí há dissolução, na hora.”
Na hora, eu não teria a angústia existencial que teve o Presidente Jorge Sampaio, quando não foi para eleições e houve a substituição. Mantenho esse princípio. Agora, não me peçam para dizer que renuncio ao poder de dissolver. Não renuncio. Não renuncio neste sentido: habituei-me a nunca dizer nunca. Porque os factos, a realidade, às vezes são mais imaginativos do que a nossa imaginação.
Se acontecerem coisas neste mundo que são do outro mundo, o Presidente tem até ao dia 9 de Setembro de 2025 o poder de dissolução. Deseja utilizá-lo? Não deseja, por várias razões: temos uma guerra, temos as crises económicas emergentes, temos um PRR que, na minha visão do copo, na segunda fase, está atrasado. A minha orientação é essa. Se sentir que realmente há uma coisa patológica excepcional, então pondero isso.
No discurso de Ano Novo, disse textualmente isto: "2022 não foi a viragem esperada” e seria “imperdoável desbaratar 2023". Se por ventura o Governo desbaratar 2023, não vai fazer uma leitura política dos resultados das eleições europeias?
Isso é a tal situação patológica que é o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). De repente, vamos imaginar que chegamos ao fim de 2023 e concluímos que, além da primeira fase, que é ir pedir o dinheiro a Bruxelas, esse dinheiro nunca mais chega aos beneficiários finais, e nós temos, no final de 2023, um panorama desgraçado do ponto de vista da execução do PRR, desgraçada situação económica e social do país... Havendo um conjunto de circunstâncias que são a tal situação patológica, então eu teria de repensar a realidade. Mas não acredito que haja condições para isso. Pelo contrário.
Falou num governo forte, mas também diz que é preciso uma oposição forte, uma alternativa forte. Ela existe?
Há aritmeticamente, não há politicamente.
Explico: aritmeticamente, a maioria das sondagens mostra que, neste momento, os partidos de centro-direita e direita têm, em regra, maior percentagem somados do que os partidos de esquerda. Há uma alternativa, mas não é uma alternativa política, porque um dos partidos diz que se recusa a entender-se com um terceiro. Portanto, não se somam os votos em termos de coligação ou de convergência, neste momento.
Uma alternativa para ser forte tem de ter um partido liderante do hemisfério mais forte do que os outros. O PS, mesmo com aquelas formas originais dos dois governos anteriores, era muito mais forte em termos eleitorais e em termos políticos do que os demais.
O PSD, na coligação com o CDS, tinha entre três e quatro vezes a dimensão do CDS.
Neste momento, as sondagens mostram que o partido mais importante daquela área está acima do somatório dos outros dois, mas não chega a ter o dobro do somatório dos outros dois. Portanto, isso dá uma alternativa fraca na liderança.
Qualquer partido à direita ou à esquerda, centro-direita ou centro-esquerda que quer liderar o respectivo hemisfério tem de ter um ascendente claro, porque se não o tiver, o vazio é preenchido pelos outros. Isto quer dizer que a liderança que foi legitimada pelo voto para dois anos e que tem à sua frente um percurso longo a fazer não é capaz de lá chegar? Não quer dizer. O professor Barbosa de Melo tinha uma frase de que gosto muito, que é: dança quem está na roda. Quem está na roda agora é o líder da oposição. Só entra um de fora se quem está na roda decidir sair ou conduzir a dança de tal maneira que dá espaço a que outro entre.
Nos Açores houve uma coligação parlamentar que viabilizou um governo. Ontem conhecemos que um dos parceiros deste entendimento, a Iniciativa liberal, se tinha retirado. Deixou de haver condições para este governo continuar?
Entre ontem e hoje ouvi o representante da República, o presidente da Assembleia Legislativa, o presidente do governo e o líder da oposição para ficar com o retrato da situação. E aquilo que inferi é o seguinte: está a ser executado um orçamento que teve uma maioria ampla que o votou, não há orçamento rectificativo previsível e, portanto, há um caminho até ao próximo orçamento, que é no final do ano.
Neste quadro, fui informado de que decorrem contactos para apurar se os elementos que se afastaram da base de apoio e dos termos do apoio — ainda não entregaram as suas declarações ao Representante da República — aceitam ou não apoios parlamentares e em que termos e com que incidência, sobretudo em documentos fundamentais, nomeadamente o orçamento.
Está confiante?
Não estou confiante. Estou a dizer que é esta a informação que me dão. Neste quadro, em termos de estabilidade e governabilidade, aquilo que existe é um conjunto de diligências em curso no sentido de se perceber qual é a possibilidade de um governo minoritário.
O presidente do governo regional, aliás, colocou bem a questão, porque disse: "Temos condições de estabilidade e de governabilidade. Não obstante, é o povo o soberano decisivo." Não se coloca neste momento aquilo que levaria à intervenção do Presidente, por isso é que o Presidente se quis informar, porque o representante da República participa na formação do governo, mas para dissolver só o Presidente da República.