Os oceanos contêm 50 vezes mais carbono do que a atmosfera, funcionam como um termóstato do planeta. A possibilidade de usar a tecnologia para aumentar essa capacidade de absorção de dióxido de carbono (CO2) é o objectivo das muitas ideias que estão a fomentar o desenvolvimento de tecnologias para Intervenções Climáticas com Base no Oceano (OCBI, na sigla em inglês). Uma equipa internacional de cientistas, na qual se incluem duas portuguesas, publica nesta sexta-feira na revista Science um apelo a que se reflicta sobre os potenciais impactos destas tecnologias nos ecossistemas do mar profundo.
“Não estamos contra as OBCI, queremos é que se reflicta de forma organizada, baseada no conhecimento científico e que todo o processo seja transparente em relação aos seus potenciais impactos”, disseram ao PÚBLICO, por e-mail, Ana Colaço, do Instituto de Investigação em Ciências do Mar – Okeanos, da Universidade dos Açores, e Nélia Mestre, do Centro de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Algarve, duas das signatárias do artigo na Science.
De que falamos quando falamos de OBCI? “São várias técnicas propostas que adicionam substâncias ou colocam estruturas no mar para mitigação do clima”, explicam as duas investigadoras. Os exemplos são variados. Por exemplo, a fertilização dos oceanos e a cultura de macroalgas para caírem no fundo do mar, com o objectivo de amplificar os processos naturais através dos quais os organismos marinhos absorvem dióxido de carbono através da fotossíntese.
“A fertilização dos oceanos tem técnicas patenteadas por empresas (por exemplo, a GreenSea Venture), enquanto outras empresas procuram fundos para iniciarem de forma comercial em larga escala”, explica Ana Colaço.
Por outro lado, as macroalgas já são cultivadas em vários países, para rações, alimentação ou para se tornarem fontes de energia. Na Noruega fala-se em cultivar macroalgas e afundá-las nos fiordes, diz Ana Colaço. “Podem ser uma boa forma de sequestrar o CO2. No entanto, em larga escala e associadas a infra-estruturas para se depositar no fundo do mar poderão desequilibrar o ambiente extremamente estável e delicado que é o solo marinho em profundidade, e afectar funções e serviços do ecossistema importantes para manter o planeta saudável”, acrescenta a cientista da Universidade dos Açores.
“Imaginem o fundo do mar anóxico [sem oxigénio]”, pede Ana Colaço “Isto afectaria os serviços do ecossistema de reciclagem de nutrientes”, fundamentais para a produção do oxigénio que respiramos.
Outro conceito tecnológico de que se fala para tentar retirar gases com efeito de estufa da atmosfera é a injecção de CO2 em estado líquido em águas profundas, ou mesmo por baixo dos fundos marinhos, para tentar acelerar os processos de sequestro do dióxido de carbono, exemplificam os cientistas no artigo publicado na Science.
“Se existirem fugas, poderá ter graves consequências, pois todo o carbono depositado no fundo do mar sob a forma de conchas e outras estruturas carbonatadas poderá ser de novo libertado”, avisa Ana Colaço.
Isto faria diminuir o pH não só à superfície, mas também em águas profundas, aumentando a acidez dos oceanos, que é já um problema hoje. Prejudica muitas formas de vida: interfere com o desenvolvimento de espécies com carapaça ou esqueleto de carbonato cálcico, como corais e moluscos, por exemplo.
Mas a proposta tecnológica pode passar também pela alcalinização dos oceanos para aumentar o processo de captura de CO2 da atmosfera. “Pretende adicionar materiais alcalinos à água do mar, ou separar as águas superficiais em ácido e base por métodos electroquímicos, e depois transportar a componente ácida para profundidades superiores a 2000 metros”, diz Nélia Mestre.
De momento, estas ideias são apenas conceitos. “Para surtirem o efeito desejado, terão de ser postas em prática em larga escala, o que pode induzir uma escala proporcional de impactos (potencialmente muito negativos) nos ecossistemas”, alertam as duas autoras portuguesas do artigo, Ana Colaço e Nélia Mestre.
“Todas estas técnicas são preocupantes, e várias novas ideias estão a surgir, por exemplo através de concursos de ideias como o Xprize”, exemplifica ainda Nélia Mestre.
Consequências nefastas
Daí a ideia do artigo na Science, que lança um apelo a uma abordagem “coordenada e integrada” para que se estabeleçam processos de tomada de decisão e padrões de avaliação para as Intervenções Climáticas com Base no Oceano.
“Estas acções poderão ser reguladas através da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CBD), a Convenção de Londres de 1972 e o Protocolo de Londres de 1996”, diz Ana Colaço. “Mas há necessidade de se criar um fórum próprio, onde se estabelecem directivas e regulamentação para este tipo de acções”, completa Nélia Mestre.
“O planeta precisa de acções para minimizar os efeitos das alterações climáticas, mas estas têm que ser pensadas e estudadas”, avisa Ana Colaço, em conversa com o PÚBLICO. “Mas começaram a aparecer uma quantidade de soluções que, embora apenas tenham sido experimentadas [algumas] em pequena escala, vemos que podem ter consequências bastante nefastas” para o mar profundo, a área em que Ana Colaço e Nélia Mestre trabalham.
“O artigo serve, no fundo, como um alerta; achamos bem que se proponham acções, mas temos de pensar um pouco e obter mais conhecimento para que a solução não seja pior que o problema”, explica Ana Colaço. “Obviamente que as acções também não podem substituir a redução das emissões de dióxido de carbono e uma indústria mais sustentável, portanto tem que ser um todo. Estamos a alertar que temos de parar para pensar, para estudar os potenciais efeitos das OCBI de uma forma mais coordenada”, insiste.
As duas cientistas portuguesas assinam este artigo na Science porque fazem parte da Deep Ocean Stewardship Initiative. O objectivo deste grupo é integrar ciência, tecnologia, política, direito e economia para aconselhar sobre a gestão dos ecossistemas, do uso de recursos no oceano profundo e estratégias para manter a integridade de ecossistemas oceânicos dentro e fora do território sob jurisdição nacional.
Projectos hão-de surgir em Portugal
Que papel pode ter Portugal para que avancemos com cautela nestas tecnologias OCBI? “Portugal tem uma enorme área marinha, e um capital de economia azul enorme”, começam por dizer as duas cientistas na resposta enviada ao PÚBLICO. Alertar para estas questões é essencial, pois estes projectos vão surgir em Portugal “mais cedo ou mais tarde”, frisam.
“Portugal poderá ser pioneiro se tentar estabelecer regras para estas acções, que começam a ser conceptualizadas e a ter estudos piloto em vários pontos”, defendem Ana Colaço e Nélia Mestre. Os potenciais impactos das tecnologias OCBI não têm fronteira, portanto sem uma reflexão concertada e regulamentação serão nefastas para o ambiente. Mesmo que se realizem em águas para além das jurisdições nacionais, em alto mar.
O recém-assinado Tratado para o Alto Mar (Tratado das Nações Unidas para o Uso Sustentável da Biodiversidade Para Além da Jurisdição Nacional) pode trazer alguma ajuda, dizem as duas cientistas. Ao nível do artigo 14, que fala em ferramentas de gestão espacial para proteger, preservar, restaurar e manter a biodiversidade e os ecossistemas, bem como a Parte IV do artigo 21º, que estabelece a obrigação dos países a fazer estudos de impacto em acções em áreas fora de jurisdição nacional.
“Tudo isto fará com que se tenha de regular as OCBI quer em águas nacionais quer em águas internacionais”, esperam Ana Colaço e Nélia Mestre. “Muitas destas acções só poderão ser realizadas em alto mar, levantando questões de utilização do mar em áreas fora de jurisdição nacional e este tratado obriga os estados a terem isso em conta.”
Mas, para que isso aconteça, é necessário que os países ratifiquem o tratado que foi acordado no fim-de-semana passado.