“Não há justiça climática enquanto não houver justiça de género”
A acção climática precisa das mulheres para conseguir resultados? A igualdade de género tem de ter uma dimensão ambiental?
Nos últimos anos, cada vez mais, a dimensão de género é trazida para a mesa de todos os assuntos. Mas como é que se traça a ligação entre o combate às alterações climáticas e a igualdade de género? É possível falar dos problemas das mulheres actualmente sem incluir as questões relacionadas com o ambiente e o clima?
As mulheres são as primeiras a sofrer o impacto das crises - a crise climática não é excepção. “Diria que a ligação é quase natural”, responde de imediato Susana Viseu, que preside à associação Business as Nature, promotora do movimento Mulheres pelo Clima, e é conselheira do Presidente da República para as questões ambientais. “Em grande parte do planeta ainda temos um papel fundamental nas comunidades e somos responsáveis por assistir à família e assegurar alimentação e o acesso à água”, explica a empresária. Somando-se a isto as discriminações económicas e sociais que ainda são globais, as mulheres fazem parte dos grupos mais vulneráveis aos efeitos da crise climática, incluindo catástrofes naturais e fenómenos extremos que se estão a intensificar.
Pela sua vulnerabilidade acrescida, a ONU reconhece que é preciso promover a igualdade de género nas acções de resposta à crise climática. Um dos grandes marcos deste reconhecimento aconteceu em 2014, quando os delegados da COP20 adoptaram o Programa de Trabalho de Lima sobre o Género (Lima Work Program on Gender), criado para promover o equilíbrio e integrar uma perspectiva de género no trabalho do secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas e dos países que a integram, no sentido de conseguir políticas e acções climáticas mais responsivas às questões da igualdade.
Na linha da frente
Em vários contextos pelo mundo fora, as mulheres são muitas vezes as primeiras a arregaçar as mangas para reagir a catástrofes climáticas. No seu livro Climate Justice, a irlandesa Mary Robinson, antiga presidente da Irlanda que foi também Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos e enviada especial das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, relata uma série de situações em que as mulheres estiveram na linha da frente das reivindicações, desde situações de seca extrema em países africanos até à reconstrução depois da passagem do furacão Katrina. “Elas acabam por ser não só as mais afectadas, mas também quem está na linha da frente para a recuperação nessas situações de emergência, ficando para trás para assistirem aos mais velhos e às crianças”, acrescenta Susana Viseu.
Historicamente, explica a activista Luísa Barateiro, estudante de saúde pública e activista da UMAR, o movimento ecofeminista começou precisamente por estar “ligado a problemas muito concretos”. Lutas contra a desflorestação, contra a poluição causada por resíduos tóxicos ou contra as ameaças do nuclear foram algumas das primeiras causas das mulheres na área ambiental.
Nos contextos rurais (onde ainda vive cerca de metade da população mundial), as mulheres acabam por ter um papel central nas comunidades locais - e é por isso essencial, explica Susana Viseu, “envolvê-las numa agricultura mais sustentável, numa gestão mais sustentável dos recursos, explicar como é que se faz, criar competências no âmbito da água potável, da autoprodução de energia renovável”. “É fundamental mobilizar as mulheres na acção climática, para catalisar ainda mais aquilo que é o seu papel de guardiãs e de gestoras dos recursos naturais em muitas geografias”, diz Susana Viseu.
Cuidado com a família e com a natureza
O que liga as mulheres à acção climática por todo o mundo? “As mulheres, pelo contexto social, estão mais associadas ao cuidado”, reconhece Luísa Barateiro. A nível global, esta associação entre várias questões - em particular o acesso à alimentação e à água - é ainda mais visível. “Nos países europeus isso já vai sendo mais dividido, mas em muitas realidades e na maioria do mundo as mulheres têm um papel na comunidade que ainda é de total assistência à família”, explica Susana Viseu.
No caso das muitas geografias onde não existe água canalizada, por exemplo, são as mulheres que vão buscar essa água, “pondo muitas vezes em risco a sua segurança e até limitando aquilo que podem fazer em termos da sua educação e do seu desenvolvimento profissional, que a maior parte das vezes não existe, porque elas têm abandonar a escola muito cedo para cuidar da família e para aceder a estes recursos e trabalhar na agricultura”.
São as mulheres quem ainda mais cuida da casa, mas também dos quintais, jardins, ou mesmo terrenos e campos agrícolas familiares. Com esta “proximidade e conexão com a natureza”, explica Luísa, são por norma as primeiras a tomar consciência dos perigos e da escassez: quando falta água, quando as plantas deixam de crescer, quando existe contaminação dos terrenos.
Para importantes teóricas do ecofeminismo como a filósofa e física indiana Vandana Shiva, a defesa da segurança alimentar é um dos pilares fundamentais da defesa do planeta. Cruzando as questões de género, do clima e do colonialismo, Shiva tem tecido críticas à forma como, por exemplo, são comercializadas sementes geneticamente modificadas e pesticidas, ignorando os saberes dos povos locais.
Aliás, para Luísa Barateiro, o reconhecimento destas vozes (a que actualmente muito chamam do “Sul global”) é uma parte importante da “justiça climática”. Por exemplo, estão a ganhar força vozes de mulheres indígenas que têm levado “o conhecimento ancestral e indígena à academia”, cada vez mais validados por “evidência científica”. Valorizar essas vozes, explica a activista, “seria um progresso enorme”. “Não haverá justiça climática enquanto não houver justiça de género.”
E no “Norte global”?
Em países com maiores índices de desenvolvimento, onde a diferença entre os papéis de género foi perdendo algumas dimensões tradicionais, continua a fazer sentido fazer essa ligação entre género e clima?
Na esfera doméstica, também em países como Portugal as mulheres continuam a ser as principais cuidadoras e responsáveis pelas decisões da casa. “Seja no Norte ou Sul global, um ponto transversal é que as mulheres são responsáveis por cerca de 85% das decisões de compra”, nota Susana Viseu. São, por isso, uma peça indispensável do puzzle no que toca a um consumo mais sustentável e à adopção de estilos de vida mais sustentáveis.
As mulheres podem ter também um papel fundamental ao nível do desenho das políticas e dos próprios produtos. “Se não tivermos mulheres que estão em posições de liderança, tanto a nível político como a nível empresarial, muitas vezes aquilo que são as necessidades reais das mulheres são afastadas daquilo que acabam por ser os desenhos dessas políticas ou dessas estratégias empresariais.”
“Há várias camadas de opressão, problemáticas e discriminação que ligam as duas vertentes”, confirma Luísa Barateiro. E há ainda questões económicas prementes: por estarem numa posição estrutural de discriminação, com menos capacidade económica (ainda hoje as mulheres ganham, em média, menos do que os homens), são as primeiras a sentir o impacto das crises - e a ter que encontrar formas de solucionar a escassez de recursos. “Sentimos na pele a discriminação e precisamos de agir”, resume Luísa Barateiro.
Luísa Barateiro, que fez parte de diferentes colectivos ao longo dos últimos anos, foi observando que “a nível de activismo e de mobilizações, vê-se muito mais mulheres, incluindo sobre questões ambientais”. “A participação dos homens no movimento climático é fundamental”, sublinha, mas reconhece que se vê “claramente a maior participação de mulheres”. “Acredito que possa estar relacionada com a componente do cuidado”, explica. “Em algumas foi a maternidade que as despertou.”
Representação política
Por fim, as mulheres continuam a ser sub-representadas nas decisões políticas, o que tem impacto também no apoio a medidas de protecção ambiental. “É muito importante trazer essa visão feminina aos vários níveis da governação e das empresas, mas ainda estamos muito longe”, lamenta Susana Viseu. E basta olhar para as representações dos países nas conferências multilaterais: na última COP, recorda a empresária, em 114 países que se fizeram representar, havia apenas oito mulheres nas declarações iniciais.
A sub-representação não é apenas de mulheres, mas também de jovens. “Quando olhamos para o friso das conferências internacionais, vemos homens com mais de 50, 60 anos”, descreve. São estes homens que negoceiam, definem os termos dos acordos e estabelecem estas políticas globais e estratégias de intervenção. “Em questões que são tão complexas como a questão climática, que mexe com mudanças profundas na sociedade, com a alteração do modelo económico, com coisas tão simples como aquilo que fazemos diariamente e temos que passar a fazer de maneira diferente... Se não há um envolvimento de quem, depois, na prática, vai ter que aplicar essas medidas, haverá seguramente um desfasamento entre as directrizes que vêm de cima e aquilo que depois tem que ser implementado no terreno”, conclui Susana Viseu.
A organização a que preside, Business as Nature, foi promotora do movimento “Mulheres pelo Clima - dos países de língua portuguesa para o mundo”. A apresentação oficial do movimento, apresentado em Setembro do ano passado, contou com a parceria do Ministério do Ambiente e Acção Climática, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da rede internacional Casa Comum da Humanidade.
Este movimento, que realça “a necessidade de um maior equilíbrio entre os direitos humanos e a acção climática”, tem reunido mulheres de diferentes países de língua portuguesa já desde a Cimeira dos Oceanos, em Lisboa, passando pela COP27, no Egipto, a 67.ª reunião anual da Comissão sobre a Situação das Mulheres (CSW), que decorre até 17 de Março, ou a Conferência da ONU sobre Água, que terá lugar entre 22 a 24 de Março, em Nova Iorque.