Cientistas portugueses querem evitar o sofrimento animal nos laboratórios. Gomas podem ser a solução
Projecto HaPILLness está à espera de patente europeia para lançar o produto no mercado. Não causa sofrimento e pode vir a ser utilizado para dar comprimidos sem o animal mostrar relutância.
Sofia Viana, investigadora e docente da Universidade de Coimbra, acredita que deixar de utilizar animais para realizar experiências com fins terapêuticos “ainda não é uma medida viável nos anos vindouros”. Contudo, defende que é possível evitar o sofrimento destes durante os testes científicos — e para o provar desenvolveu, em conjunto com outros elementos dos Institutos de Investigação Clínico e Biomédico (ICBR) e Politécnico de Coimbra, a HaPILLness, uma tecnologia de matrizes semi-sólidas, neste caso, gomas medicamentosas, actualmente à espera de patente.
Neste momento, o que acontece nos laboratórios que optam pela administração oral nos testes científicos é o seguinte: os cientistas põem uma sonda desde a boca até ao esófago do animal para garantir que recebe a dose suficiente da substância necessária para a experiência. Este mecanismo invasivo gera stress e pode provocar danos. Assim sendo, se, em vez deste tubo, os investigadores optassem por lhes dar um medicamento via oral, como é o caso das gomas da HaPILLness, o sofrimento terminaria.
“Os animais não têm a consciência da tarefa que têm que executar e não o fazem de forma voluntária porque não sabem o fim a que se destina. Temos de garantir que [as substâncias] são doseadas, que esse doseamento é preciso, e aliar isto tudo ao nosso compromisso com a legislação que regula a experimentação animal, que visa sempre o bem-estar”, começa por explicar Sofia Viana em entrevista ao P3.
O projecto quer mudar o futuro e, tendo em conta que “não existe nenhum produto no mercado com as mesmas características”, pode vir a consegui-lo. Também é verdade que administrar um comprimido a um animal não é fácil, tendo em conta que costumam rejeitá-los ou mostrar relutância em ingeri-los quando o sabor é desagradável. No entanto, estas gomas, “desenvolvidas com sabor, textura e odor compatível com a preferência dos animais”, também podem resolver esse problema. “Os animais encontram o odor que lhes é familiar, associam-no a uma experiência positiva e têm como instinto consumi-las para se alimentarem”, explica Sofia Viana.
A investigadora principal do projecto garante ainda que estas gomas não acarretam riscos e que as vantagens se multiplicam. Entre elas, está o facto de a matriz estar vazia, o que quer dizer que podem depois ser acrescentadas substâncias para tratar vários tipos de doenças, entre as quais metabólicas, gastrointestinais ou do sistema nervoso. Basta incorporar a substância dentro da goma e dar ao animal. “Já doseamos antidepressivos, suplementos alimentares ou compostos de prata que são usados na indústria alimentar”, salienta.
Como as gomas ainda só foram testadas em ratos e murganhos, ainda não é possível garantir que os animais domésticos e de quinta também aceitem consumi-las, mas a equipa está confiante.
Gomas acessíveis para todos
A ideia começou a ser pensada em 2019 e, desde então, já foram gastos “entre 35 a 45 mil euros” em financiamento. Grande parte destes valores foi conseguida através de prémios internacionais e nacionais. No total, a equipa, actualmente com sete pessoas, já participou em quatro concursos, três dos quais portugueses. A Sociedade Portuguesa de Neurologia (SPN) deu-lhes uma bolsa de dez mil euros e a primeira edição do concurso Região de Coimbra Empreende+ valeu-lhes uma de 1200 euros, que vão receber durante seis meses.
Sofia Viana, investigadora nas áreas de pneumologia e terapêutica experimental, explica que este meio ano é destinado a “converter o protótipo para produto”, para que, dentro de dois anos, possa ser colocado à venda no mercado nacional e internacional e utilizado por cientistas, veterinários e tutores dos animais.
“Nós estamos a iniciar contactos com a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária, que é quem regula o licenciamento destes produtos, para percebermos que estabelecimentos estão licenciados para os vender”, justifica, para acrescentar que, normalmente, estão à venda nas clínicas veterinárias, parafarmácias ou em sites.
A equipa espera a patente europeia, que não deverá chegar em menos de um ano, por isso, tem-se focado em criar parcerias para começar a testar as gomas noutros animais e, simultaneamente, a “construir candidaturas de financiamento” para que tal seja possível.
Ainda em desenvolvimento, está a preparação das gomas para incluírem o medicamento receitado pelo veterinário, um processo que se afigura "simples". Quanto ao preço, também é muito cedo para antecipar um valor, mas é seguro dizer que vai depender da duração do tratamento.
Apesar de sectores como a cosmética terem deixado de utilizar animais para experiências, não é possível adoptar esta medida em todas as áreas de investigação – é o caso dos exames farmacológicos e toxicológicos. Ainda assim, assegura a investigadora, “trabalhar com experimentação animal há 20 anos era completamente diferente do que é hoje”, tendo em conta que existe o compromisso entre o que os cientistas querem aferir e o bem-estar dos animais.
“Aquilo que se perspectiva é uma redução do número de animais alocados a estas experiências, sempre tendo por base que existe uma evolução científica que permita a existência de outras plataformas que não recorrem a animais, por exemplo, organóides”, conclui.