Portugal pode ajudar a que o tratado do alto-mar entre em vigor até 2025
Criar áreas de protecção marinha nas zonas do oceano que não são de ninguém mas pertencem a toda a humanidade é um dos objectivos do tratado.
Os 52 países da Coligação de Alta Ambição que ajudaram à aprovação do documento, incluindo Portugal, têm a responsabilidade de o ratificar rapidamente, dizem organizações não-governamentais.
O que é o tratado do alto-mar e o que traz de novo?
No fim-de-semana, as negociações nas Nações Unidas, em Nova Iorque, para criar um Tratado para o Uso Sustentável da Biodiversidade Para Além da Jurisdição Nacional (conhecido pela sigla em inglês BBNJ) chegaram a bom porto, após uma maratona final de 36 horas. “É provavelmente a coisa mais importante para os oceanos das últimas décadas. Vai trazer a governação do oceano para o século XXI, permitindo-nos proteger pela primeira vez o alto-mar, que é metade do planeta”, disse ao PÚBLICO Rebecca Hubbard, directora da Aliança para o Alto-Mar, uma parceria de organizações não-governamentais que defendem este tratado.
Qual é o principal objectivo do tratado?
A ideia é criar uma rede de áreas marinhas protegidas no alto-mar, ou seja, nas zonas do oceano que estão para além da jurisdição nacional de cada Estado e que são, ao mesmo tempo, património da humanidade e de ninguém. “Essencialmente, são zonas que têm ecossistemas com uma biodiversidade muito elevada, ou única. Onde existem fontes hidrotermais. Mas também podem ser zonas importantes para a alimentação ou para a reprodução de determinadas espécies marinhas”, explica Rebecca Hubbard.
É possível dar exemplos de locais que poderiam vir a ser classificados assim?
Sim. Uma delas, identificada pela Aliança para o Alto-Mar, é a Cidade Perdida – um grande campo de fontes hidrotermais na Dorsal Médio-Atlântica. São cerca de 30 chaminés no topo do monte submarino Atlantis. Junto às fontes hidrotermais existem formas de vida únicas, ainda mal conhecidas. Pensa-se que a própria vida na Terra possa ter começado em locais assim.
Ou o mar dos Sargaços, delimitado por quatro correntes do oceano Atlântico, que fazem a corrente denominada Giro do Atlântico. Apesar de ter uma água muito transparente, costuma estar coberto de tapetes de algas do género Sargassum. Chamam-lhe a “floresta dourada do alto mar”, porque estas algas flutuantes oferecem um habitat para uma enorme variedade de espécies, além de sequestrarem carbono e emitirem oxigénio para a atmosfera.
Quando é que o tratado poderá entrar em vigor?
Primeiro, terá de ser ratificado pelo menos por 60 países. “Pode levar algum tempo, mas contamos com os 52 países da Coligação de Alta Ambição para a Biodiversidade Para Além da Jurisdição Nacional [da qual Portugal faz parte]. Era bom que entrasse em vigor em 2025, quando se realiza a próxima Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, em França”, considerou Rebecca Hubbard.
Que importância pode ter este tratado para Portugal?
Muito embora o acordo se debruce sobre áreas fora das jurisdições nacionais, a sua aplicação é importante para um país costeiro como Portugal, que confina com o regime de alto-mar, disse ao PÚBLICO fonte do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Um tratado para o alto-mar poderá ser uma plataforma privilegiada para socializar normas e as melhores práticas: “Um canal para potenciar o que fazemos bem, mas também um referencial de inspiração para o que podemos melhorar”, na visão do MNE. Portugal já tem papel activo nos organismos internacionais com competência para aprovar áreas marinhas protegidas no alto-mar, como é o caso da Convenção OSPAR, para a preservação do ambiente marinho no Atlântico Nordeste.
Portugal, no seu todo, contabiliza 93 áreas marinhas protegidas, com diferentes tipos de classificação, que cobrem cerca de 7% das águas e fundos marinhos sob jurisdição nacional.
Quais foram os temas mais difíceis de negociar?
A partilha dos benefícios obtidos com os recursos genéticos marinhos, ou com sequências genéticas de organismos marinhos que podem constar numa base de dados, foi uma das questões mais complicadas. O tratado devota-lhe um bom número de artigos, em que é estipulado que todas as partes signatárias do tratado, “seja qual for a sua localização geográfica”, podem desenvolver actividades para investigar ou explorar os recursos genéticos marinhos nas áreas do oceano para além da jurisdição nacional. Mas os eventuais benefícios “devem ser partilhados de uma forma justa e equitativa” entre os países, e contribuir para a conservação e uso sustentável das espécies marinhas.
Os benefícios não-monetários podem ser, por exemplo, a garantia de que o conhecimento gerado está acessível em bases de dados – e os países signatários devem tomar as medidas legislativas e administrativas para que isso suceda.
Quanto aos eventuais lucros com invenções obtidas a partir de recursos genéticos marinhos (como um novo medicamento), a Conferência das Partes deste tratado criará um fundo voluntário. Este fundo poderá receber, por exemplo, “pagamentos ou contribuições relacionadas com a comercialização de produtos”, uma taxa paga periodicamente com base num certo número de indicadores ou “outras formas decididas pela Conferência das Partes”.
Não havia uma dúvida sobre se os peixes deveriam ser incluídos nestes cálculos sobre os recursos genéticos marinhos?
Ficam de fora destas disposições sobre a partilha dos benefícios dos recursos genéticos marinhos “os peixes e outros recursos marinhos que são usados na pesca e actividades relacionadas em áreas para além da jurisdição nacional”.
Este tratado tem algum impacto na protecção dos ecossistemas da mineração no mar profundo?
A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos é oficialmente responsável pela mineração no mar profundo, explica Rebecca Hubbard. “Pode haver algum impacto sobre a actividade mineira, relativamente às avaliações de impacto ambiental [feitas em alto-mar]. No entanto, esta é uma das áreas em que o texto do tratado não é tão forte como poderia ser. É uma área que gostaríamos de ver reforçada no futuro”, avançou.