Mais de dois milhões de cidadãos em 30 países da Europa já se envolveram em projectos ou iniciativas colectivas de transição para energias renováveis. Falamos aqui de produção de energia que são geridos por cooperativas ou outras formas de acção colectiva. Estas iniciativas colectivas podem ser um importante complemento no caminho para a descarbonização das economias, mas existe uma (surpreendente) lacuna na recolha de dados a nível europeu sobre a sua capacidade e potencial.
Agora, num levantamento inédito publicado na revista Scientific Reports, refere-se que, em 30 países europeus (os 27 países da União Europeia, Reino Unido, Noruega e Suíça), contam-se 10.540 iniciativas que foram responsáveis pela gestão de 22.830 projectos de transição energética, envolvendo um total de 2.010.600 pessoas. E aqui não se está a contar com as instalações de “prosumers” (nome dado aos “produtores-consumidores”) individuais.
Estima-se que o investimento total nestes quase 23 mil projectos por toda a Europa tenha sido entre 6,2 e 11,3 mil milhões de euros (os dados são muito diversos - já lá vamos), com uma capacidade total instalada de energia renovável entre 7,2 e 9,9 Gigawatt (1GW equivale a mil milhões de Watts).
Segundo este levantamento, em Portugal, até Dezembro de 2021, registavam-se 37 iniciativas colectivas que resultaram em 69 projectos comunitários ou cooperativos e que envolveram cerca de 45 mil cidadãos. Neste grupo inclui-se, por exemplo, sete cooperativas criadas nos anos 1930 que gerem redes eléctricas em áreas rurais (os investigadores apuraram que servem cerca de 41.500 consumidores); instalações de pequena e média dimensão em telhados com painéis fotovoltaicos geridas por cooperativas eléctricas, ou ainda quatro centrais de energia hidroeléctrica. Estão ainda registadas em Portugal 26 eco-aldeias ou eco-comunidades.
Em resposta ao PÚBLICO, Valeria Jana Schwanitz, investigadora da Universidade de Ciências Aplicadas da Noruega Ocidental e uma das autoras do artigo agora publicado, destaca o papel da Coopérnico, uma cooperativa portuguesa de energias renováveis criada em 2013, que nos últimos dez anos deu apoio a pelo menos 29 projectos.
No total, segundo os dados apurados, em Portugal foram investidos 17,93 milhões de euros nestes projectos (uma média de 400 euros por pessoa envolvida), com uma capacidade total instalada de 4,4 Megawatt (cada MW equivale a um milhão de Watts).
A falta de dados sistematizados dificulta, contudo, a comparação entre países. Questionada sobre como Portugal está, em comparação com outros países, Valeria Jana Schwanitz responde que “não é possível fazer uma comparação justa” porque há demasiadas variáveis, tais como diferenças na legislação de cada país no que toca às tipologias de projecto e ao acesso aos mercados de energia, ou mesmo características das economias, como o nível de dependência de combustíveis fósseis para os diferentes serviços ou sectores. Sobre os números, Schwanitz responde que “é o número de pessoas envolvidas que interessa”, pelo valor que se cria a nível local. “O modelo colaborativo funciona à escala comunitária, independentemente da dimensão do país.”
Os dados que mostram esta “evidência estatística da contribuição de iniciativas e projectos geridos por cidadãos para a transição energética na Europa” foram publicados na quinta-feira na revista científica Scientific Reports, do grupo da Nature.
Apoio do Estado
Os dados mostram que o apoio do Estado - seja de ordem financeira, legislativa ou mesmo administrativa - é essencial para que estes projectos comunitários tenham sucesso. Para Valeria Jana Schwanitz, “colocar as pessoas acima do lucro deveria ser uma premissa em mais situações”.
E o que pode funcionar para facilitar estas iniciativas? Uma das medidas que têm sido bem-sucedidas em países europeus são as tarifas garantidas, que garantem um preço acima do mercado aos produtores de energias de fontes renováveis. Contudo, para muitas iniciativas, a burocracia e o facto de a legislação muitas vezes favorecer produtores comerciais e de larga escala são alguns dos obstáculos mais comuns. “Remover estas barreiras seria um grande incentivo ao envolvimento de mais cidadãos”, afirma a investigadora, que considera promissora a inclusão destes “prosumers” nas directivas a nível da União Europeia.
Em Portugal, até há poucos anos, o enquadramento legal favorecia grandes actores comerciais na instalação de energias renováveis, destacando-se a excepção da cooperativa Coopérnico, que encontrou um nicho para apoiar comunidades de produção energia.
As alterações legislativas introduzidas em 2019 permitiram o autoconsumo de energia renovável produzida a nível colectivo, com a definição de comunidades de energia renovável (CER) ou autoconsumos colectivos (ACC). Contudo, tem havido dificuldades na aplicação da nova lei, tanto pelos obstáculos administrativos como pelo facto de que a própria transposição das directivas europeias para a legislação nacional foi feita com algum nível de “má interpretação”, nas palavras da autora do artigo.
Em Janeiro, de acordo com dados do Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC), Portugal tinha apenas quatro destas comunidades certificadas a funcionar em pleno. No total, foram submetidos 372 processos de licenciamento destes projectos de produção comunitária e autoconsumo de energia solar, dos quais 95 já “obtiveram aprovação da Direcção-Geral de Energia e Geologia [DGEG] e de viabilidade técnica” por parte da distribuidora de energia E-Redes. É entre esses 95 registos aprovados que estão os quatro autoconsumos colectivos que solicitaram certificação e que se encontram em exploração.
“Só conta aquilo que é contado”
“De facto, não existe uma recolha de dados a nível da União Europeia e foi essa a nossa motivação para começar este levantamento e procurar pelo menos uma estimativa”, explica ao PÚBLICO Valeria Jana Schwanitz. Há algumas excepções, nomeadamente países onde existem não apenas registos das iniciativas formalizadas a nível nacional, como estes estão disponíveis em dados abertos - é o caso da Alemanha, Dinamarca e Países Baixos.
“É importante notar que apenas podemos contar o que está registado de alguma forma, pelo que as nossas estimativas são muito conservadoras”, ressalva. As informações foram “pescadas” de várias fontes, desde registos oficiais a outras plataformas, websites ou meios de comunicação.
“Há quem diga que só conta aquilo que é contado”, diz a investigadora. “Foi por isso que começámos a contar as iniciativas, projectos, oportunidades de envolvimento e também o dinheiro investido.”
Os investigadores trabalharam no âmbito dos projectos europeus COMETS, sobre modelos de acção colectiva para a transição energética e a inovação social, e EERAdata, para um ecossistema de dados justo e aberto na comunidade de pesquisa sobre energia de baixo carbono. Os dados podem também ser explorados no site do Repositório de Comunidades de Energia da Comissão Europeia, através de um mapa interactivo.
Cidadãos aliados da transição
Os dados mostram que o envolvimento colectivo dos cidadãos na transição energética “é um movimento de longo prazo e o seu impacto tem sido esquecido”, revela a investigadora.
Uma das principais conclusões dos investigadores é que a recolha e análise de dados sobre acções e projectos de iniciativa colectiva dos cidadãos poderia ser uma ferramenta preciosa não apenas para reconhecer o contributo agregado dos esforços comunitários para a transição energética, mas também para ajudar no desenho de políticas para incentivar a organização deste tipo de comunidades.
A criação de comunidades de produção e autoconsumo de energias renováveis também tem outro benefício importante no longo prazo: aumentar a aceitação das medidas necessárias para a transição energética.
No artigo, refere-se que existe um efeito de contágio associado à propagação destas comunidades. A lógica é simples: quanto mais comunidades aderirem a estas formas colectivas de produção para autoconsumo, mais exemplos haverá para mostrar a outros grupos como é que estas iniciativas se concretizam e quais os seus benefícios.
“As pessoas fazem a diferença ao passar a palavra e unir forças”, diz Valeria Jana Schwanitz. “A investigação mostra que o consumo a nível individual é importante e, na soma de tudo, pode ser um ponto fulcral para atingir a neutralidade carbónica.”
Para a investigadora, é muitas vezes esquecido que as medidas de descarbonização do lado da procura são de fácil aplicação, “mais fáceis de implementar e menos custosas do que esperar pelas soluções tecnológicas ou por avanços políticos internacionais complexos”.