A cada extinção em massa, a vida “volta de uma forma completamente diferente”
Em Mundos Perdidos, Thomas Halliday transporta o leitor para ecossistemas cada vez mais distantes. O livro tenta traduzir a “substância real” da paleobiologia e é um aviso sobre a fragilidade da vida.
Se fosse possível, o paleobiólogo britânico Thomas Halliday entrava numa máquina do tempo com destino ao Mediterrâneo do final do Miocénico, há cerca de 5,33 milhões de anos. Por essa altura, a Terra proporcionou “uma das mais espectaculares visões” de sempre, diz ao PÚBLICO, numa entrevista por videochamada por causa do seu livro Mundos Perdidos: Uma Viagem Pelos Ecossistemas Extintos da Terra, editado recentemente pela Desassossego.
Há 5,33 milhões de anos o estreito de Gibraltar estava tapado, não havendo acesso das águas do Atlântico ao Mediterrâneo. Como resultado, o mar tinha secado, restando apenas lagos de sal no fundo daquele vale, que em alguns lugares alcançava os quatro quilómetros abaixo do nível médio do mar.
Mas um movimento tectónico voltou a abrir o estreito de Gibraltar e as águas do Atlântico lançaram-se no enorme vale. É essa a visão espectacular de Halliday. Primeiro a bacia ocidental do Mediterrâneo encheu-se, depois a oriental, “pela maior catarata que alguma vez existiu na Terra”, lê-se no livro. Ou seja, de um momento para o outro, tudo mudou. Essa sensação de volatilidade percorre Mundos Perdidos, apesar das centenas de milhões de anos que o livro abrange.
A cada capítulo, o leitor depara-se com um momento no espaço e no tempo, uma geografia única e um ecossistema com animais e plantas para se descobrir. A viagem inicia-se no Pleistocénico, há 20.000 anos, entre humanos, cavalos e mamutes, e termina no Ediacariano, há 550 milhões de anos, num mundo marinho onde os animais estão a aprender a ser animais.
Um pequeno mapa, no início dos capítulos, introduz a Terra onde o leitor se encontra. É sempre o mesmo planeta, mas a geografia vai ficando cada vez mais diferente e irreconhecível, tal como os organismos que existem nele, que de tempos a tempos são submetidos a enormes cataclismos. “Embora a vida continue, persista e prospere, as especificidades de como a vida existe a cada momento podem ser surpreendentemente frágeis”, diz-nos o autor. E essa é uma lição para o agora.
Cada capítulo de Mundos Perdidos passa-se num momento e local específicos da história da Terra, com um ecossistema único. Mas há uma sensação de temporalidade: cada lugar está prestes a mudar radicalmente ou é o produto de uma grande transformação. O tempo está sempre sobre nós. Enquanto paleobiólogo, essa era uma sensação que queria transmitir ao leitor?
Isso é uma das lições. A vida tem sido diversa e maravilhosa desde que existe. Mas o que todos os ecossistemas onde vou no livro mostram é que eles estão perdidos, desapareceram. Embora a vida continue, persista e prospere, as especificidades de como a vida existe a cada momento podem ser surpreendentemente frágeis.
Do ponto de vista da vida humana, a maior parte da nossa história foi suficientemente lenta para que não tenhamos experienciado isso directamente. Apenas nos últimos 150 a 200 anos é que produzimos mudanças na Terra suficientemente grandes para começarmos a sentir a nossa fragilidade de uma forma existencial.
O passado pode dar a perspectiva de que não há nada que seja necessário ou intrínseco para o funcionamento da Terra na forma como as coisas estão neste momento. Mas há algo de necessário e fundamental na forma como a Terra funciona agora para a nossa existência, e é isso que é muito importante. Não há nenhum tipo de mecanismo que vai nos fazer parar se não nos pararmos a nós mesmos.
Como pensou cada ecossistema?
Criei uma lista onde cada um dos continentes modernos estivesse representado, e uma amostra diversa de temporalidades e paisagens que existiram. Se tivesse escolhido os lugares mais bem preservados de cada período, iria sempre dar a uma lagoa pouco profunda. Isso não seria muito interessante.
Assim que defini a lista, li o que havia na literatura científica e fui tentando reconstruir cada lugar, dizendo que este lugar é um delta situado no equador, por exemplo, e o que é que isso significa a nível daquele ambiente.
Lendo os artigos científicos obtemos detalhes climáticos e também olhando para ambientes análogos que existem hoje. Viajei por vários ambientes. Gosto de passear na natureza e visitar diferentes paisagens. Para os ambientes que não tenho experiência pessoal, como no caso de Soom, no capítulo sobre o Ordovícico, que é um fiorde glacial, pude ler trabalhos de outros escritores de viagens. Se há certos fenómenos naturais que desconheço, há vídeos disponíveis que me dão uma noção sobre o que é estar ali.
Combinei tudo isto numa história que parece natural e não é forçada como seria se fosse um palco onde cada personagem surge e vai embora. Isso poderia parecer um pouco artificial, como se estivéssemos a visitar um zoológico.
Há muita informação científica em cada capítulo, mas a sensação dos espaços e a acção entre as espécies vieram da sua imaginação. De que forma a observação da natureza ajudou nisso?
Para produzir a sensação de um lugar é necessário apoiar-nos em parte na imaginação. Mas as experiências humanas também são reais, é a minha resposta pessoal aos lugares. Enquanto humanos, relacionamo-nos com os sentimentos. Apesar de os factos serem tão sólido como qualquer facto científico pode ser, para se compreender o sentido de um lugar é preciso entrar no lado emocional. E isso é algo que tenho de pensar: como é que eu me sentiria num determinado lugar.
Por isso, a floresta húmida da Antárctida que retratei no capítulo passado no Eocénico, chamado “Ciclos”, que é um ecossistema de uma floresta húmida temperada, é de alguma forma o tipo de ecossistema onde cresci. A floresta à volta de minha casa era um pequeno fragmento de uma floresta húmida temperada nas Terras Altas da Escócia. Sei o que é estar naquela vegetação toda emaranhada e farfalhuda onde as plantas crescem umas por cima das outras. É maravilhoso. É um lugar que abrange tudo. Tentei trazer essa sensação quando descrevi uma floresta semelhante, mas que existia do outro lado do mundo.
Porque decidiu escrever o livro?
A causa imediata foi uma competição de escrita que acabei por vencer. A premissa era um ensaio de 1000 palavras sobre um fóssil descoberto nos últimos 30 anos na Escócia, e foi lançado pela Sociedade Geológica da Escócia. Encarei o ensaio desta forma: “Aqui estou eu a caminhar numa praia que conheço bem e vou visitar um lugar com este fóssil importante, que é um dos primeiros organismos em terra com quatro patas. Por isso, é um antepassado distante nosso ou está próximo desse antepassado.”
A competição correu bem e pensei que talvez isso fosse algo que pudesse traduzir para uma forma mais longa. Quando digo às pessoas que sou um paleontólogo, a pergunta mais comum que me fazem, depois de “Qual é o teu dinossauro favorito?”, é “Para onde irias se tivesses uma máquina do tempo?” A minha resposta é o mar Mediterrâneo, há cinco milhões de anos, quando estava completamente evaporado e transformado numa salina com quilómetros de profundidade. Gostava de ver essa paisagem e ver o mar a ser reabastecido. Porque acho que foi uma das mais espectaculares visões que a Terra proporcionou. Esse foi o primeiro capítulo que escrevi.
Por que é que estes mundos antigos o fascinam?
O mundo natural foi algo que sempre me interessou profundamente. Tenho a certeza de que crescer no campo, brincar na floresta e ter veados a passear no meu jardim teve um papel nesse interesse. Uma das questões que me interessam é como chegámos onde estamos hoje? Não é suficiente aceitar o mundo à nossa volta. Na biologia, a resposta está nos fósseis e nos organismos que vieram antes de nós, que estão relacionados connosco e com outras criaturas à nossa volta.
Cheguei à paleontologia por estar muito interessado na taxonomia, nas relações dos organismos. De como estas árvores de seres vivos, ao longo de milhões de anos, surgem e se extinguem, e podem evoluir gradualmente, ou haver mudanças súbitas. Para mim, é de um fascínio sem fim perceber como os organismos se relacionam entre si e como é que nós conseguimos compreender isso.
No início do livro, diz que o nome das espécies e a taxonomia podem fixar as espécies desaparecidas num conceito que não permite vê-las, de facto. Porquê?
Um nome está muito bem e pode ser algo extremamente evocativo. É a linguagem que usamos. Mas por si só não diz nada sobre a forma como um organismo vive e pode provocar alguma distracção. Quando se tem um novo nome de um fóssil publicado, quase sempre quando é o nome de um dinossauro, é possível atrair a atenção dos jornais. Temos por exemplo o Diabloceratops, que é um dinossauro com cornos cujo nome tenta invocar o diabo da mitologia cristã. Mas não diz nada sobre como o organismo viveu.
Enquanto paleobiólogos, estamos sempre a tentar reconstruir a vida passada e a mostrar como os organismos viveram, como os ecossistemas funcionaram, o que aconteceu há milhões de anos. Isso é algo difícil de se compreender imediatamente a partir da observação de um fóssil quando não se tem o treino nesta disciplina. Por isso, o livro tenta traduzir as questões interessantes que os paleontólogos fazem, tenta traduzir a substância real da ciência em algo que seja compreensível. E não num almanaque de curiosidades acerca dos metros de comprimento do Patagotitan.
O livro caminha do presente para o passado e não o inverso, como acontece frequentemente. Há uma sensação crescente de estranheza. Começamos na idade do gelo e quando chegamos ao Ediacariano, há 550 milhões de anos, estamos num mundo alienígena. Essa escolha foi propositada?
Sim. A principal razão foi por causa do aumento de estranheza. Quis ter a certeza que não perdia o leitor imediatamente. Podemos imaginar abrir um livro e sermos imediatamente atirados para este mundo completamente alienígena [do Ediacariano] onde até as estrelas são diferentes e os dias têm outra duração. É preciso primeiro entrar nesse mundo e compreender que o livro vai funcionar desta forma, depois há ainda novos conceitos da ecologia…
Por isso, iniciei com algo que em muitos casos é semelhante aos dias de hoje. Na idade do gelo há criaturas que são reconhecíveis, há cavalos, leões e mamutes. De alguma forma, sabemos onde estamos. E posso introduzir palavras como ecossistema e nicho, de modo que os leitores não vão ser logo completamente sobrecarregados.
Além disso, parece-me natural da perspectiva da geologia e da paleontologia, porque os ecossistemas mais recentes são aqueles que estão geralmente à superfície. São os que estão mais perto de nós. À medida que continuamos a escavar e vamos para baixo, vamos avançando para o material cada vez mais antigo.
Quais são os seus ecossistemas favoritos na história da vida?
Acho que o de Rhynie é maravilhosamente alienígena. Passa-se há 409 milhões de anos na Escócia e é um dos primeiros ecossistemas terrestres realmente bem preservados. É no tempo em que as plantas atingiam apenas 30 centímetros de altura, mas existiam enormes líquenes que se pareciam com cabeços de amarração que em alguns lugares atingiam nove metros de altura. É tão diferente dos ecossistemas terrestres de hoje…
O capítulo é sobre como os organismos competem e colaboram entre si para produzir certos fenómenos emergentes. A tão conhecida colonização da terra não é apenas o movimento de um peixe cheio de esperança que de repente salta para uma praia. É algo que acontece num movimento concertado feito por todo o tipo de organismos. Acho que a informação que se obtém com o ecossistema de Rhynie é tão importante e interessante que é um dos meus favoritos.
Também adoro a formação de Madigan, no Quirguistão, no Triásico. É muito raro termos um ecossistema situado a mais de 1000 quilómetros dentro de terra no arranjo continental daquele tempo. Por isso, temos ali cerca de 70% de espécies endémicas. Quase tudo ali é único, não só as magníficas excentricidades como o Sharovipteryx mirabilis, um tipo de lagarto que usa as pernas traseiras para planar no ar.
É também uma chamada de atenção fantástica para aquilo que não conhecemos. O que conhecemos está em grande parte conectado com a água. Qualquer tipo de ecossistema de montanha não costuma ficar preservado. Há todo um número de dinossauros de montanha e mamíferos de montanha que nunca iremos descobrir. Ter consciência disso dá uma verdadeira humildade enquanto cientista. Sabemos do tipo de limitações daquilo que podemos fazer, e ainda assim há novas espécies a serem descritas o tempo todo. Há sempre mais informação. É um tema maravilhoso para se fazer parte.
Há vários colapsos durante a história da Terra que alteraram por completo o caminho da vida. O que podemos aprender com esses eventos?
O mais importante de reconhecer é que após as extinções em massa, apesar da vida voltar e acabar sempre por ser tão diversa e vibrante quanto antes, nunca é a mesma. Ela volta de uma forma completamente diferente. Novos organismos fazem o que os seus análogos faziam antes. Há amêijoas que constroem recifes, ou esponjas que constroem recifes. Agora temos corais que constroem recifes. Depois de cada fenómeno de extinção em massa, o papel do construtor de recifes mudou com frequência. Mas lá porque a vida sobrevive, isso não significa que há necessariamente um lugar no novo mundo para os participantes do mundo antigo.
A extinção é a perda de conexões entre os organismos. São essas ligações dentro de um ecossistema que permitem os organismos persistirem e sobreviverem. As extinções em massa ocorrem quando muitas dessas ligações são rompidas. Quando olhamos para o mundo hoje, termos o cuidado de não cortar demais aquelas ligações é algo incrivelmente importante.
As alterações climáticas são um dos lados do problema que está afectar o mundo hoje. O outro é a crise da biodiversidade causada em parte pelas alterações climáticas, mas também pela poluição, pela fragmentação dos habitats e pela exploração de recursos. Olhar para o passado permite perceber como as coisas mudam num instante, de como temos de ser muito cuidadosos na preservação do mundo onde evoluímos, porque esse mundo não é fundamental para o funcionamento da Terra, mas é fundamental para o nosso funcionamento.
De que forma o conhecimento da Terra no passado informa acerca dos perigos que estamos a correr agora?
A Paleontologia sempre deu um grande contributo para a ciência climática. Eunice Newton Foote, que identificou pela primeira vez o dióxido de carbono como sendo um gás com efeito de estufa, em 1856, estava interessada como é que ocorriam pântanos tropicais [onde se originou carvão] durante o Carbonífero em lugares como o Norte da Europa, onde um ecossistema daqueles não poderia sobreviver hoje. Ela tinha a questão: “Teve haver mais dióxido de carbono na atmosfera para se ter acabado por formar o carvão. Que efeito é que isso teve na atmosfera?”. Ela encheu cilindros com gases diferentes, mediu os efeitos que os raios solares tinham neles e descobriu o efeito de estufa. Essa foi uma descoberta que veio directamente da paleontologia.
Toda a nossa compreensão de como os sistemas climáticos tendem a responder ao longo de escalas de tempo maiores vem da comunidade de paleoclimatólogos que estudam como a atmosfera foi em passados distantes, tanto pelas bolhas nas amostras de gelo, que permitem medir directamente o ar, como observando as assinaturas dos isótopos de oxigénio nas conchas do mar. As conchas são formadas no tempo de vida do organismo, com um rácio do isótopo equivalente ao que existe na atmosfera. Esse rácio é controlado por temperaturas globais. Por isso, obtêm-se todos estes tipos de dados indirectos.
Podemos olhar para as extinções em massa e frequentemente há um elemento climático. A extinção do Ordovícico, há cerca de 400 milhões de anos, foi causada por um arrefecimento rápido global, com os glaciares a aparecerem e a chegarem onde é hoje o deserto do Sara e a bacia amazónica, mas era na altura o pólo sul. Depois houve um segundo pulso de aquecimento que derreteu essas camadas de gelo. A extinção que marcou o fim do Pérmico teve um enorme efeito de estufa causado pelo metano produzido pelos vulcões.
Que impacto é que essas mudanças têm nos organismos?
Cada organismo na Terra tem a sua tolerância para aquilo que consegue sustentar em termos de temperatura, acidez se for um organismo aquático, secura no caso das plantas. Se se atravessa esse limite de tolerância, acaba-se extinto num curto período de tempo.
Quando se fala em estarmos a mudar o clima, significa que estamos a mudar os parâmetros em cada ecossistema e talvez eles ultrapassem a tolerância de um organismo. O que significa que ele ou muda fisicamente de lugar a nível geográfico ou acaba extinto. Os organismos podem migrar muito rapidamente. Por isso, uma parte importante das ligações construídas dentro de um ecossistema acabam por ficar esgarçadas porque algumas das espécies dessa comunidade precisam de fugir para não se extinguir, enquanto outras espécies não precisam, é aí que surgem os colapsos.