Proteger a natureza “é uma ideia falha, e pífia também”
“O ambiente não precisa de ser protegido.” O PÚBLICO partiu desta provocação de Ai Weiwei para interpelar diferentes especialistas. E encontrou um consenso: falar em protecção é um erro.
A vida começou num mundo quente. Não havia ainda uma camada protectora de ozono na atmosfera superior da Terra. O que existia eram organismos minúsculos, chamados cianobactérias, que “aprenderam” a aproveitar os raios de sol para produzir energia. Ao longo dos muitos milhões de anos que se seguiram, a evolução viabilizou uma miríade de outros seres vivos, incluindo o Homo sapiens. Agora que o planeta volta a aquecer, os humanos ambicionam proteger o conjunto da vida que o precedeu. Faz sentido?
“Nós somos recém-chegados. A nossa espécie está a dar os primeiros passos neste planeta. Esta tese de que temos de proteger a natureza é uma inversão do ónus da primazia. Nós somos parte da natureza e dela dependemos”, alerta o filósofo português Viriato Soromenho-Marques, professor catedrático da Universidade de Lisboa.
Ao rejeitar o conceito de protecção, declina-se também uma relação de poder entre o domínio do humano e da natureza – esferas que, de resto, não deveriam ser entendidas separadamente. Como os humanos integram o mundo natural, o papel de protecção esvazia-se. Quem cuida de quem? Se pretendo proteger um ecossistema do qual faço parte, isto é superioridade, autocuidado ou apenas uma ilusão? Estas são algumas das questões que emergem da citação proposta pelo artista Ai Weiwei, e que o PÚBLICO usou para interpelar não só o filósofo Soromenho-Marques, mas também a ecóloga Helena Freitas, a curadora Margarida Mendes e a poetisa Ellen Lima.
“Não há uma separação entre humanos e natureza, este binómio é falso e deverá ser revertido, pois é este grande hiato que está na base dos problemas de extractivismo que testemunhamos hoje”, afirma a curadora e investigadora Margarida Mendes, cujo trabalho explora o impacte sociocultural das transformações ambientais.
A curadora exalta a importância de uma “reverência recíproca para com tudo o que nos rodeia”. E isso inclui não só os seres vivos (animais, vegetais e fungos), mas também o reino mineral e ancestral. Esta atitude de cortesia mútua tornaria supérflua a retórica dominante de “protecção da natureza” — um discurso que, de tão repetido, parece infiltrar-se acriticamente no nosso quotidiano. A ideia de “protecção” e “salvação” está presente nos mais variados produtos culturais, dos manuais escolares às campanhas de marketing, passando também pelas páginas deste jornal.
“O mundo natural em nosso redor não necessita de nenhuma intervenção humana, pois ele regenera-se sem nós. Basta não irmos contra ele”, acredita Margarida Mendes, reverberando a provocação do artista Ai Weiwei que serviu de ponto de partida para este texto.
“Desligamento do mundo biológico”
Opinião semelhante tem a poetisa brasileira Ellen Lima, indígena de origem Wassu Cocal, actualmente a realizar um doutoramento na Universidade do Minho. “A natureza foi dividida na era moderna — ela é uma coisa e nós somos outra. Mas isso não procede. É por isso que esta ideia de proteger a natureza não faz qualquer sentido. A ideia de protecção é falha, e pífia também”, defende.
A ecóloga Helena Freitas também sublinha a incoerência da cisão entre as esferas humana e natural. “Quando somos parte da natureza, deixa de fazer sentido quem protege quem. Contamos com a natureza para nos garantir um conjunto de bens e serviços sem os quais não vivemos — água, alimento, abrigo, regulação do clima, etc. Eu beneficio, mas também sou parte disso. Como dizia [a escritora] Rachel Carson, nada existe sozinho na natureza”, recorda a professora e investigadora da Universidade de Coimbra, que, desde o ano passado, dirige o Parque de Serralves, no Porto.
A ideia de protecção deveria ser substituída pela de dependência, defende Helena Freitas. Esta operação simbólica reposicionaria o lugar do humano, desencorajando a noção de superioridade e a desconexão do mundo biológico. É desse “desligamento” — a palavra é um fio condutor no raciocínio da investigadora — que advém, em parte, a ideia de “protecção”. Perdemos, como humanos, a “consciência da dependência” e isso conduz-nos à “ideia de cuidador”. Falamos em cuidar da natureza como se dela não fizéssemos parte e, assim, escondemos a nossa própria vulnerabilidade.
“Hoje, as ciências da vida e a biologia questionam o próprio conceito de espécie e a forma como esta ideia pode ser perniciosa para a forma como nos posicionamos. A tendência que temos como espécie é colocarmo-nos no topo da pirâmide, como se fôssemos um produto directo de uma evolução capaz de nos colocar num vértice”, refere a directora do Parque de Serralves.
“A pulsão de morte que nos habita”
A questão central desta discussão, para Soromenho-Marques, é compreender por que razão pensamos que temos de defender a natureza da qual dependemos. Sem esse entendimento, diz o filósofo, não vamos até à raiz e continuamos a ignorar como chegámos até aqui.
“Será que esta aparente generosidade não é uma proposta que acaba por ocultar algo pouco nobre, que é a nossa incapacidade de autocontrolo? A incapacidade de gerirmos a pulsão de morte que nos habita? É mais simpático dizer ‘temos de proteger a natureza’ do que dizer que ‘temos de transformar a forma como habitamos a Terra por forma a podermos viver longamente neste planeta', não é?”, indaga o filósofo, que ensina filosofia na natureza na Universidade de Lisboa.
É preciso colocar a humanidade diante do espelho – ou, para sermos justos, parte dela, uma vez que a atitude humana perante o sistema terrestre não é homogénea nem linear. Ellen Lima frisa, por exemplo, que os povos originários [do Brasil] sempre se “propuseram ao exercício de entender a Terra como um organismo vivo”, com a ciência de que a espécie humana integra o ambiente.
Margarida Mendes, por sua vez, cartografa com precisão a incapacidade de autocontrolo, apontando o dedo para o hemisfério norte. “O que sei ao certo é que o poder extractivo de alguns humanos (e aqui estou a falar essencialmente do 1% do Norte Global) tem aniquilado formas de vida e o seu entrelaçamento benéfico, diverso e reestruturador”, refere a curadora.
Somos hoje oito mil milhões sobre a crosta terrestre. Recebemos todos os dias notícias que, se inseridas do domínio da ficção, seriam um sinal do apocalipse: as calotas polares não param de derreter, os microplásticos e as substâncias químicas “eternas” tornaram-se quase omnipresentes, o regresso da guerra à Europa faz-nos cogitar o risco de um Inverno nuclear, os acontecimentos climáticos extremos tornam-se mais frequentes e intensos. Esta catadupa de informação assegura-nos que é preciso agir, mas não nos fornece necessariamente um retrovisor. Continuamos sem um espelho que nos devolva as imagens de que precisamos.
“O que está em causa é a sobrevivência da humanidade em condições que hoje consideramos vida digna. Mesmo com uma conjugação de guerra nuclear e catástrofe ambiental, haverá sempre um conjunto de indivíduos que vai sobreviver — os super-ricos que já têm abrigos para o fim do mundo. Sim, porque agora há uma indústria do fim do mundo. Alguém vai sobreviver. Temos de perceber como nos tornámos uma espécie ameaçadora para a Terra e para nós próprios. Se não percebermos a raiz disso, não temos hipótese nenhuma de sair daqui”, avisa o filósofo.
“A utopia tecnocientífica”
Viriato Soromenho-Marques tem investigado esta questão recorrendo a vários autores, incluindo Rachel Carson. No famoso livro Primavera Silenciosa, publicado há mais de 60 anos, a autora norte-americana usa o caso do pesticida diclorodifeniltricloroetano (DDT) para fornecer pistas sobre a incapacidade humana de autocontrolo.
“Os historiadores do futuro podem muito bem ficar espantados com a nossa distorcida noção das proporções. Como puderam seres inteligentes tentar controlar algumas espécies indesejadas com um método que contaminou todo o meio ambiente e trouxe a ameaça de doenças e morte até para a própria espécie? No entanto, foi exactamente isso que fizemos”, lê-se na badana da nova tradução de Primavera Silenciosa, que acaba de chegar às livrarias portuguesas.
A tese que Soromenho-Marques defende é, de forma simplificada, a de que houve uma grande mudança na forma como nos vemos a nós próprios. Passámos de uma “utopia baseada na sapiência, à maneira da República de Platão”, para uma “utopia tecnocientífica”, em que apostamos tudo na exploração do mundo através do conhecimento. Procuramos fazer coisas com o nosso conhecimento que nos sejam úteis e que “maximizem as nossas relações de poder”, segundo o filósofo.
“No fundo, andamos há 400 anos a cumular poder sobre a natureza. Tendo em conta esta origem, é compreensível que digamos que temos de proteger a natureza – quando, na verdade, temos é de a proteger de nós próprios e do poder que não controlamos. E trata-se de um poder, como diz a Rachel Carson, que se volta contra nós”, conclui o filósofo.
“Uma completa alucinação cultural”
Soromenho-Marques sublinha como esta utopia tecnocientífica não só nos trouxe até aqui como nos quer vender soluções para sairmos daqui. Os insectos estão em declínio? Acenamos com polinizadores em forma de drones. O planeta está a aquecer? Oferecemos soluções de geoengenharia capazes de reflectir a luz do sol de volta para o espaço e, assim, fazer descer os termómetros. “Hoje vivemos uma distopia, é uma completa alucinação cultural”, diz o filósofo, “e não há nenhuma certeza de que consigamos uma vitória sobre nós próprios”.
Enquanto a humanidade procura atalhos e soluções, ou envereda por descaminhos, o planeta continua a aquecer. A poetisa Ellen Lima recorre a outro pensador, o filósofo indígena brasileiro Ailton Krenak, para vincar a vulnerabilidade humana no sistema terrestre. “Quando olhamos para o Antropoceno, para essa era na qual os homens são entendidos como agentes geológicos, Krenak diz que a Terra pode muito bem seguir o caminho dela sem nós.”
Continuaremos, com o nosso cérebro evoluído, a tentar “segurar o céu” para “adiar o fim do mundo”, ainda citando Ailton Krenak, mas sempre sem saber as consequências exactas que este mundo quente trará para cada um de nós. Resta-nos nas mãos uma certeza: o planeta existe há 4,6 mil milhões de anos e assim continuará por muito tempo, com ou sem a protecção humana.