Única urgência de pedopsiquiatria da região Sul fecha à noite. Médicos contestam
Primeira noite de encerramento da urgência de pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia revelou fragilidades. Médicos alertam para importância de pedopsiquiatras.
O director de Pediatria do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, Gonçalo Cordeiro Ferreira, alertou esta quinta-feira para o aumento de casos de doença mental, deixando críticas ao encerramento nocturno das urgências de pedopsiquiatria no hospital, que servem a região de Lisboa e o Sul do país.
Às 20h, quando o Serviço de Urgência de Pedopsiquiatria de Infância e Adolescência no Dona Estefânia encerra, os casos passam para as urgências pediátricas gerais. Esta quinta-feira foi o primeiro dia do novo modelo que já revelou fragilidades, disse à Lusa o director do serviço de Pediatria.
"Esta madrugada, às 6h/7h, apareceu um jovem com problemas psiquiátricos, bastante volumoso, com 70 e muitos quilos, muito agressivo e, não havendo pedopsiquiatra, foi muito difícil fazer-lhe qualquer contenção", relatou Gonçalo Cordeiro Ferreira.
Como não podia estar na sala de espera até que os pedopsiquiatras chegassem, uma vez que "ameaçava destruir a sala, teve de ficar no jardim do hospital à espera (...) porque, de facto, era muito difícil conseguir contê-lo e não havia know-how [em português, conhecimento prático] capaz de o fazer", adiantou.
O médico pediatra afirmou também que era preciso ter pensado nestas situações antes de tomar a decisão do encerramento nocturno das três urgências metropolitanas de pedopsiquiatria, que funcionam no Hospital Dona Estefânia (em Lisboa), no Centro Materno Infantil do Norte (do Centro Hospitalar Universitário do Porto) e no Hospital Pediátrico de Coimbra.
"São situações que, em última análise, vão prejudicar os doentes, e não me venham dizer que são poucos doentes porque só um já é muito", vincou.
O responsável lembrou que há alguns anos existiam "muito mais pedopsiquiatras" no hospital Dona Estefânia do que nos outros, e sendo uma urgência metropolitana contribuíam todos os hospitais de Lisboa e do Sul do país.
"Nessa altura fez-se uma distribuição em que 50% dos turnos da urgência seriam cumpridos por elementos do Dona Estefânia e os restantes por profissionais fora do hospital. Agora a situação está totalmente invertida e os pedopsiquiatras já não conseguem assegurar todos os turnos nessa base dos 50%", explicou.
Segundo o pediatra, foi pedida uma redistribuição dos turnos "por cabeça", mas a proposta não foi aceite pelos responsáveis pela área da saúde e doença mental na Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo, chegando-se a "um impasse" que culminou no fecho da urgência nocturna.
"Diria que o bem-estar ou a comodidade de alguns profissionais prejudicou, ou vai prejudicar, uma série de doentes. Tenho muita pena de o dizer, mas é verdade", frisou.
Gonçalo Cordeiro Ferreira disse que o Centro Hospitalar Lisboa Central, em que se integra o Dona Estefânia, propôs que houvesse um pedopsiquiatra de prevenção, mas não foi autorizado. Agora, quem faz a contenção dos menores que recorrem às três urgências metropolitanas de pedopsiquiatria durante a noite são os pediatras, seguindo o modelo da zona Norte.
"No Norte é assim, e seguramente funcionará bem, mas isto implicou um treino dos pediatras, e não é um treino que se possa pensar que vai ocorrer numa semana, em duas ou até num mês", disse, justificando que são "protocolos complexos de sedação em que se usam determinadas drogas, que são até off label [uso de medicamentos para fins diferentes dos aprovados pelas entidades reguladoras] para estas idades, e que têm de ser manejadas por quem tem anos e anos de experiência", elucidou.
O especialista defendeu ainda que é preciso ter em conta as realidades diferentes nas várias regiões do país: "Se os políticos defendem a regionalização, então têm de perceber que há outros sectores que têm de ser tratados de uma forma regionalizada. Curiosamente, são esses mesmos políticos que acham que é tudo igual."
Além disso, alertou para o facto de a urgência de pedopsiquiatria passar a ser referenciada. "As pessoas não podem vir da rua, mas se vierem têm de ser os pediatras a triar", explicou, considerando que esta dinâmica exige uma carga adicional aos pediatras, para a qual "não estão ainda treinados", além de terem de se preocupar "com muitos outros doentes graves da pediatria".
Destacou ainda que o recurso aos serviços e às urgências de pedopsiquiatria aumentou exponencialmente no mundo depois da pandemia.
Em Portugal, rematou, "as intoxicações medicamentosas voluntárias aumentaram muito de 2020 para 2021 e, portanto, temos de ter esta colaboração estreita entre pediatras e pedopsiquiatras para bem desta população".
Coordenação justifica-se
A Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental afirmou esta quinta-feira que o encerramento das urgências de pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia permite melhorar as respostas programadas, admitindo que a adaptação ao novo modelo "demore algum tempo".
Num esclarecimento enviado à Lusa, assinado por Miguel Xavier e Cristina Marques, os representantes da coordenação nacional asseguram que o novo modelo de funcionamento das urgências do hospital em Lisboa não põe em causa os "cuidados e a segurança dos utentes".
"Esta reconfiguração teve como objectivo principal melhorar o acesso de crianças e adolescentes aos cuidados de saúde mental, tendo em conta os recursos humanos existentes nesta especialidade no momento presente", justificam.
Reconhecendo o incidente relatado por Gonçalo Cordeiro Ferreira, os representantes da coordenação nacional afirmam que, "como é habitual neste tipo de processos, é expectável que a entrada em rotina de novos procedimentos demore algum tempo" e admitem que possam "surgir situações em que os procedimentos não são efectuados totalmente de acordo com a nova regulamentação".
"A implementação deste modelo será acompanhada continuamente, de modo a que se possa avaliar a sua efectividade, e efectuar os ajustamentos que forem sendo considerados necessários para garantir os melhores níveis de prestação de cuidados a crianças e adolescentes que recorram a todo o Serviço Nacional de Saúde", acrescentam no esclarecimento.
Em resposta às críticas ao novo modelo, a coordenação nacional justificou o encerramento das urgências pedopsiquiátricas com a falta de profissionais de saúde, explicando que o objectivo foi reduzir o número de horas de urgência para melhorar as respostas em ambulatório.
De acordo com os representantes, é aí que "se deve centrar a assistência a esta população", uma vez que o acompanhamento "atempado e eficaz em ambulatório vai reduzir progressivamente o recurso ao serviço de urgência".
Por isso, acrescentam, "num momento em que existe uma escassez significativa de profissionais, não há justificação para alocar uma parte importante das horas semanais de trabalho a serviços de urgência em que a média de atendimentos nocturnos é muito baixa, prejudicando dessa maneira as actividades de ambulatório".