Mariana Mortágua: “É nos movimentos sociais que o BE pode crescer” e “está a crescer”
Em entrevista ao PÚBLICO/Renascença, Mariana Mortágua fala do seu projecto para o Bloco, das condições de crescimento do partido ou dos perigos da extrema-direita.
Acabou de anunciar a sua candidatura a líder do Bloco de Esquerda, mas já tem duas grandes tarefas no caderno de encargos, caso seja eleita. Mariana Mortágua quer fazer oposição à maioria absoluta e "construir uma maioria social" contra o PS e a direita, para a qual acredita existirem condições na sociedade devido às "políticas de desigualdade" do Governo. O partido "está a crescer" e vai "reforçar-se" eleitoralmente junto das "mobilizações sociais", garante.
Em entrevista ao Hora da Verdade do PÚBLICO/Renascença, Mortágua rejeita radicalismos — o seu projecto para o BE será "socialista" —, mas garante que será "determinada" no combate aos poderes instalados. Sobre a ascensão da extrema-direita, pede um "compromisso" ao PS e ao PSD: o primeiro, para que não polarize, o segundo, para que clarifique a sua posição.
Em que é que um BE liderado por Mariana Mortágua vai ser diferente em relação ao de Catarina Martins?
Catarina Martins foi a melhor porta-voz do BE num período difícil. A nova coordenação tem de responder a duas questões essenciais: em primeiro lugar, é preciso fazer oposição à maioria absoluta. As pessoas sentem, e com toda a razão, que querem ser levadas a sério. É preciso levar o país a sério, e isso significa respeitar as suas expectativas, respeitar o seu direito a ter uma vida boa. E essa é a segunda parte do desafio: construir campos sociais de uma gente que não se conforma com a maioria absoluta, que acha que não tem de viver assim, mas que rejeita um projecto de direita para o país. E é com essas pessoas e nessas mobilizações sociais que o Bloco pode crescer e, aliás, já está a crescer.
Porque é que Catarina Martins sai agora e entra Mariana Mortágua?
Não quero falar por Catarina Martins porque a decisão foi tomada pessoalmente. Posso falar sobre porque é que avanço para a coordenação do BE: porque acredito que é possível lutar por um país melhor, onde as pessoas vivem melhor. Acredito sinceramente que há um projecto que possa garantir que as pessoas não têm sempre de estar a lutar contra o pior que vem aí, nem por mínimos. Não entendo porque é que em Portugal não há condições — produzimos o suficiente, temos riqueza suficiente — para que toda a gente possa ter acesso a uma casa confortável, ao seu tempo de trabalho com direitos, ao seu tempo de lazer, à cultura. É por esse país que quero lutar e tenho muito entusiasmo e estou com muita vontade de construir essas maiorias e esse campo social.
A renovação é uma tentativa de fazer reset, ou seja, é preciso relançar o Bloco?
Sinto que o BE está a crescer. Porque há uma desilusão com estas políticas de desigualdade e há um grande sentimento de que Portugal é um país injusto e se torna cada vez mais injusto e que há boas causas e boas propostas para travar essa injustiça. Posso dar exemplos: a especulação imobiliária e a selvajaria em que se tornou o mercado da habitação é uma área em que há campo e espaço para construir alternativas e conseguir oferecer às pessoas uma vida digna e acesso à habitação.
Em 2019, Catarina Martins dizia que o programa do Bloco é social-democrata. Um programa encabeçado por Mariana Mortágua segue essa linha?
O BE tem uma definição muito clara nos seus programas e na moção que encabeço: afirma-se como um projecto socialista, feminista, ambientalista e anti-racista. Existe entre nós a convicção de que um modelo económico que se constrói em cima de desigualdades, em cima de uma maioria de pessoas que vive mal, que recebe mal, em cima da destruição do planeta e que alimenta ressentimentos, não pode ser uma inevitabilidade. Temos de conseguir, enquanto sociedade, lutar para ter outro modelo económico e outra organização da sociedade.
Qual é a ambição neste momento, é influenciar um governo, integrar um governo?
A ambição de quem faz política é construir uma maioria social. Não preciso de convencer ninguém a querer uma vida mais justa. O que é preciso é mostrar às pessoas que isso é possível e que as propostas para construir esse país são exequíveis e sensatas (...). Só uma maioria social em torno de um projecto pode mudar um país. Por isso é que a política é um campo de construção alargada de maiorias, não é um campo de calculismos frios, porque isso é brincar com a vida das pessoas, não é construir soluções para as pessoas.
O que responde às pessoas que a tratam como radical? Há esse perigo de radicalização no BE se for eleita?
Sempre fui muito determinada na denúncia e na oposição a um monstro que existe em Portugal, que é uma oligarquia financeira, portas giratórias, uma política de favores, que nos arrasta para baixo. É uma corrente agarrada ao nosso pé e que tem de ser denunciada, porque é contra a democracia, a economia, a igualdade. E a esquerda está cá para denunciar, e essa denúncia tem que ser feita com muita clareza. Ambiciono ter essa clareza nessa denúncia.
Gostaria de pôr essa ideia da radicalização em contexto. Há um benefício fiscal [dado a não residentes] em Portugal que custa quase mil milhões de euros (...). É cerca de três vezes o que custa repor o tempo de serviço aos professores. E gostaria de perguntar onde é que está a radicalidade e onde é que está a sensatez. (...) Acho que esta ideia de que lutar por uma vida boa e lutar pela dignidade das pessoas se tornou radical mostra o quanto é preciso fazê-lo.
Acha que o PS a considera uma personagem radical no campo político?
Sei que toco muitas vezes em muitos temas sensíveis e que posso incomodar alguns poderes instalados a quem não agrada este tipo de intervenção, mas na verdade o meu compromisso quando fui eleita [como deputada] não é com esses poderes instalados. O meu compromisso é com as pessoas que trabalham e querem uma vida digna e querem uma vida decente e têm direito a ela.
Receia que Miguel Albuquerque possa ir buscar o Chega para um eventual entendimento na Madeira?
Essa pergunta aplica-se ao PSD-Madeira como se aplica ao PSD nacional (...). Acho um erro, acho que não deve haver espaço nem abertura para as ideias de extrema-direita. Porque isso é o país do ódio, do ressentimento, das pessoas contra as pessoas, porque não se constrói nada. Mas não me posso substituir ao PSD nessas decisões, apenas posso constatar a má ideia que é.
Há uns meses, dizia que não é justo pedir à esquerda que trave a extrema-direita. Coloca a responsabilidade no PSD, em Luís Montenegro?
A esquerda tem certamente uma responsabilidade e um papel, sobretudo de construir outra cultura. A extrema-direita quer quer mudar a cultura, quer injectar a sociedade portuguesa com ódios e com ressentimentos: o racismo, o medo do outro, a perseguição religiosa, a discriminação. Reparem que a cultura da extrema-direita é sempre uma cultura que condena uma parte das pessoas à infelicidade e as outras ao ressentimento relativamente a essa parte. A esquerda tem um papel, que é o de uma cultura oposta, de construir uma cultura de aceitação, de tolerância, de dignidade, de respeito, de solidariedade, de alegria.
Mas a direita também tem uma responsabilidade quando se trata de travar a extrema-direita. A direita tem talvez a grande responsabilidade que é de não integrar o seu discurso e, portanto, não sentir que é competindo com a extrema-direita no seu discurso que vai conseguir alguma coisa. Porque vai conseguir apenas banalizar a discriminação, o ódio e o discurso violento e não banalizar a presença da extrema-direita no poder. Felizmente, estamos muito longe disso.
E vê que a tendência do líder do PSD é de manter este tabu e abrir cada vez mais o espaço ao Chega e à extrema-direita?
Espero que não, e acredito numa sociedade que resiste a essas ideias (...), mas para isso é preciso haver um compromisso forte do PS de não polarizar com o Chega e fazer o debate onde ele importa, que é o debate das escolhas para a democracia, em vez de uma polarização estéril que só alimenta o Chega. E um compromisso de clarificação, inclusive da direita tradicional, do PSD, que não pode continuar a alimentar esta dúvida sobre se sim ou se não. Já se percebeu que ela gera medo nas pessoas e não podemos aceitar que as pessoas estejam sempre a ser confrontadas com uma decisão pelo medo, com a política do medo.
Deixará para a convenção coisas como os objectivos eleitorais nas europeias, nas legislativas?
O objectivo eleitoral é que o resultado eleitoral do BE reflicta um campo social que apoia as propostas que temos para a sociedade (...). Os resultados eleitorais serão reflexos disso. Se queremos um reforço eleitoral? Queremos, claro que queremos, porque ele reflecte o apoio às nossas propostas. Se achamos que ele é possível? Achamos, sim, inclusive que o BE se está a reforçar. Espero que cresça, porque se isso quiser dizer que há mais apoio às propostas para um país mais justo, melhores serviços públicos, um mais forte e determinado combate à precariedade, um mais forte combate às alterações climáticas, então ainda bem, temos hipóteses de construir esse país.