Quem foi Virgínia Quaresma, “invisibilizada na história do jornalismo”?
Virgínia Quaresma foi a primeira mulher jornalista profissional em Portugal, uma profissão onde precisava de “ser despida de certos preconceitos para poder suportar os preconceitos dos homens”.
Virgínia Quaresma foi a primeira mulher jornalista a trabalhar numa redacção em Portugal, mas pouco se sabe sobre ela: é “constantemente invisibilizada na história do jornalismo”, descreveu esta terça-feira Carla Cerqueira, investigadora da Universidade Lusófona do Porto, numa mesa redonda organizada pela revista Faces de Eva, que homenageou a histórica jornalista no número mais recente da publicação, apresentado no auditório do PÚBLICO em Lisboa.
Virgínia Quaresma nasceu em 1882, em Elvas. Uma “mulher privilegiada”, mudou-se para Lisboa e sempre teve as condições para prosperar. Privou com republicanos e monárquicos (apesar de defensora da República) e começou a escrever em jornais ainda antes do 5 de Outubro. Em 1906, com apenas 23 anos, começou a escrever para o Jornal da Mulher sobre a educação das mulheres e feminismo. Era defensora do direito ao divórcio e teve um papel importante na implementação desse direito. “Dizia que o trabalho jornalístico era uma forma de intervenção”, descreve Carla Cerqueira.
Não foi a primeira a escrever para um jornal, mas nenhuma antes se tinha profissionalizado. Colaborou com O Século e A Capital, dirigiu a revista Alma Feminina e a carreira estendeu-se para lá do oceano. Depois de muitos anos no Brasil, regressou a Lisboa. Quando morreu, aos 90 anos, no velório estavam apenas a irmã e a criada.
O que gostava mesmo era de fazer reportagens — era jornalista por “inclinação e necessidade forte de luta pela vida”. A revista ABC definia-a como “a repórter das vibrações”: era intensa e isso espelhava-se no que escrevia. Soube em primeira mão, por exemplo, que a Alemanha tinha declarado guerra a Portugal, mesmo antes do Presidente Bernardino Machado e do chefe de governo.
A investigadora Carla Cerqueira conta que, desde que soube da existência de Virgínia Quaresma, quis saber mais sobre quem foi esta mulher e o que resta hoje do seu legado — mas não encontrou muito. Virgínia era negra e lésbica (de “inclinações sáficas”, como se afirmava na altura), mas no trabalho jornalístico que produziu, do que se conhece, não há sinais daquilo que hoje se entende como “interseccionalidade”, descreve Carla Cerqueira, referindo-se aos reflexos do seu cruzamento de identidades. Há, contudo, poucos registos do que escreveu — algo que pode não ser tão estranho, numa altura em que muitas mulheres não assinavam os artigos ou assinavam com pseudónimos masculinos.
Sendo a primeira mulher a entrar numa redacção, lugar antes reservado aos homens, abriu de facto caminho para as que se seguiram — mas não sem custos. “A mulher que queira enveredar por este caminho tem que ter uma educação especial, tem de ser despida de certos preconceitos para poder suportar os preconceitos dos homens”, disse numa entrevista ao jornal A Capital.
Há conquistas inegáveis, mas há muito por fazer
Virgínia Quaresma foi a figura homenageada no 47.º número da publicação científica Faces de Eva, numa edição coordenada pelas investigadoras Mariana Rodrigues e Sara Torres. A apresentação no auditório do PÚBLICO, nesta terça-feira, contou com uma mesa redonda onde participaram, além de Carla Cerqueira, as investigadoras Isabel Ventura e Filipa Subtil.
Isabel Ventura, investigadora do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta e autora do livro As Primeiras Mulheres Repórteres, falou sobre os anos 1960 e 1970. Nessa altura, as redacções eram “masculinas e brancas” e havia mesmo “uma segregação espacial”, já que “os jornalistas diziam que a presença de mulheres punha em causa a sua liberdade”: não podiam dizer o que lhes apetecia. Além disso, os jornalistas eram conhecidos pela “promiscuidade e vida nocturna” e não era bem visto esse “livre convívio com homens”. Para além disso, considerava-se que “não eram inteligentes o suficiente para escrever sobre determinados assuntos”, sendo afastadas para “secções da mulher”.
O primeiro aumento significativo de mulheres nas redacções (face aos valores residuais ou nulos que antes eram hábito), nos anos 1960 e 1970, não ocorreu por mudança desses preconceitos: quando os jornalistas eram presos pela PIDE ou morriam, explicou a investigadora Isabel Ventura, as famílias ficavam vulneráveis e as redacções, não raras vezes, davam emprego às mulheres para subsistirem — pagando menos do que aos maridos.
A investigadora Filipa Subtil, do Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, considera que “jamais podemos dizer” que as mulheres “não estiveram presentes” nas redacções: “não pode continuar a ser negligenciada a existência da mulher” na história do jornalismo português. Mas foram, de facto, os maiores índices de escolaridade e mobilidade social que advieram da Revolução dos Cravos que acabaram por trazer as grandes mudanças: a partir daí, especialmente nos anos 1980 e 1990, os espaços de trabalho rejuvenesceram e ficaram mais letrados, em particular a presença feminina.
Este “processo de feminização contínuo” nas redacções, contudo, estancou na primeira década deste milénio: nos últimos anos, por diversos motivos, o número de mulheres jornalistas tem estancado em cerca de 40% dos detentores de carteira profissional. Hoje, as mulheres já integram plenamente as redacções, mas abandonam mais a profissão do que os homens. E as que entram são obrigadas a vidas precárias, de mais “estágios consecutivos, mal remunerados, trabalhos à peça e situações ilegais”.
Isabel Ventura falou ainda sobre casos de violência sobre jornalistas como Shireen Abu Akleh, palestiniana morta por forças israelitas, e Lara Logan, sexualmente agredida por dezenas de homens no Egipto, enquanto fazia reportagem.
“A feminização no local de trabalho é um processo profundamente incompleto, parcial e travado”, conclui Filipa Subtil. E “mesmo com as conquistas inegáveis das últimas décadas”, há ainda “muitos obstáculos”
Texto editado por Aline Flor