É urgente haver um tratado para o alto-mar, mas a diplomacia anda devagar

Terminam esta semana em Nova Iorque as negociações para um acordo que proteja a biodiversidade marinha nas áreas para além da jurisdição nacional de cada país. O que está em causa?

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Um ganso-patola mergulha para caçar um peixe: um tratado que proteja a biodiversidade das zonas marinhas para lá das jurisdições nacionais é fundamental para atingir o objectivo 30x30 Pascal Rossignol/REUTERS

É no alto-mar, que não está sob a jurisdição de país nenhum, que se encontra a maior diversidade biológica dos oceanos. Estas águas internacionais representam quase dois terços dos oceanos, mas apenas cerca de 1% desta área está sob alguma protecção. Não pertence a país nenhum, é património comum da humanidade. Para garantir o uso sustentável desta parte do oceano, os países tentam pôr-se de acordo, até ao final da semana, em Nova Iorque, na sede das Nações Unidas, para produzir um tratado para o alto-mar. Mas está a ser difícil.

“Ainda temos tempo, mas é preciso que haja mais sentimento de urgência e mais ambição”, disse ao PÚBLICO, a partir das Nações Unidas, em Nova Iorque, onde decorrem as negociações, Julian Jackson, especialista da organização não-governamental Pew Charitable Trusts, que tem entre as suas causas a conservação do oceano.

Os ecossistemas do alto-mar são importantes para a sobrevivência de espécies como baleias, tartarugas-marinhas, tubarões e atuns. Um tratado que proteja a biodiversidade das zonas marinhas para lá das jurisdições nacionais é fundamental para que se alcance o objectivo de proteger 30% dos ecossistemas do planeta até 2030 (conhecido como a meta 30x30), aprovado em Dezembro na Cimeira da Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica (COP15), em Montreal.

Sem esse tratado, não há forma de proteger as zonas ricas em biodiversidade do alto-mar das várias formas de exploração que ali podem ocorrer, desde a pesca industrial pelas maiores nações pesqueiras do mundo, a pesca ilegal não-reportada e não-regulada, até à bioprospecção, que é a procura sistemática por genes com interesse científico e comercial nas espécies que vivem no oceano, para desenvolver medicamentos e outros produtos. Sem esquecer que o oceano é um importante sumidouro de carbono – absorve cerca de 31% das emissões de dióxido de carbono, segundo um estudo de publicado na revista Science em 2019.

Desde sábado que 193 países trabalham sobre uma nova proposta de texto para o tratado, o que deu um novo alento às negociações. “Já podemos ver a arquitectura de um novo tratado. Mas algumas opções que não nos parecem ter ambição suficiente, e alguns dos grandes temas políticos ainda estão pendentes. Se não se resolverem, tudo o resto se torna problemático”, avaliou o especialista da Pew Charitable Trusts, que faz parte de uma organização não-governamental chamada High Seas Alliance, que integra 40 grupos mais a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). O objectivo é fazer pressão para que o tratado para o alto-mar se torne realidade.

Estas negociações decorrem no quadro da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e “este acordo internacional constitui uma peça central no âmbito da sua aplicação em prol do uso sustentável dos oceanos”, disse ao PÚBLICO fonte do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que acompanha as negociações pelo lado português.

“Sendo a protecção dos oceanos uma prioridade para Portugal, considera-se importante a conclusão de um acordo ambicioso e equilibrado que permita abordar de forma integrada e coerente o desafio da conservação e uso sustentável da biodiversidade além da jurisdição nacional”, explica.

As negociações de agora continuam as que decorreram em Agosto, nas quais activistas e governos de todo o mundo depositavam muitas esperanças de que tivesse sido o momento em que haveria acordo para o que é oficialmente designado como Tratado das Nações Unidas para o Uso Sustentável da Biodiversidade Para Além da Jurisdição Nacional (também conhecido pela sigla em inglês BBNJ). Mas não houve acordo.

A expectativa ficou adiada para as novas negociações que se iniciaram na semana passada, entre 193 países representados nas Nações Unidas, e que devem terminar esta semana, a 3 de Março.

“Sentimento de urgência e ambição” é o que as organizações não-governamentais pedem aos Estados a uma só voz. “As negociações devem acelerar e o Norte Global deve procurar fazer compromissos, em vez de estar a ser picuinhas acerca de pormenores”, apelou a organização ambientalista Greenpeace.

Apelos de Guterres

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, reforçou esse sentimento, com um apelo lançado na quarta-feira: “O nosso oceano está sob pressão há décadas. Não podemos continuar a ignorar a emergência do oceano”, pediu.

As alterações climáticas, a perda de biodiversidade e a poluição estão a afectar o oceano em todo o planeta. “Afectam o ambiente, a nossa subsistência e as nossas vidas. Se adoptarmos um acordo robusto e ambicioso nestas negociações, podemos dar um importante passo em frente para contrariar estas tendências e avançar na protecção da saúde do oceano durante as próximas gerações", afirmou António Guterres.

Nada garante que o secretário-geral da ONU seja ouvido. Mas há algum país que se destaque no bloqueio ao acordo? “Acho que é justo dizer que a Federação Russa está a atrasar o progresso tanto quanto possível, mas sempre foi céptica em relação a este tratado”, disse Julian Jackson, embora sublinhe que não participa nas negociações, apenas pode assistir ao plenário. “Mas acho que a maioria dos Estados estão interessados em chegar a acordo”, considerou.

Alguns países estão a fazer finca-pé na necessidade de estabelecer mecanismos para desbloquear o processo de tomada de decisões através de votação – uma vez que, em princípio, as decisões têm de ser tomadas por consenso. “Assim, todas as partes têm de concordar com alguma coisa, mas isso também significa que qualquer uma das partes pode bloquear a tomada de decisão. É muito importante que haja cláusulas que permitam desbloquear estas situações”, adianta Julian Jackson.

Portugal faz parte de um grupo de 52 países que se autodesigna Coligação de Alta Ambição para a Biodiversidade Para Além da Jurisdição Nacional, que se comprometeram a tentar tornar realidade este tratado, o mais rapidamente possível.

Neste momento, o processo negocial tem questões abertas em diferentes capítulos de negociações, na avaliação feita pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros:

  • Nos recursos genéticos e partilha de benefícios daí decorrentes;
  • Ferramentas de gestão, incluindo áreas protegidas e estudos de impacto ambiental;
  • Capacitação e transferência de tecnologia;
  • Assuntos transversais e questões institucionais.

“Aguarda-se que circule um texto com possíveis soluções aproximadas para tentar gerar um entendimento. Das reacções dependerá a possibilidade de fechar o acordo na presente sessão, que encerra no final desta semana”, adiantou.

Um grupo das mais importantes organizações e filantropos individuais, como o Bezos Earth Fund, a Bloomberg Philanthropies, ou a Fundação Gordon e Betty Moore anunciaram nesta quinta-feira, o compromisso colectivo de doarem cinco milhões de dólares para apoiar as nações a pôr em prática o tratado para o alto mar que está a ser negociado. O anúncio foi feito no início da conferência Our Ocean, no Panamá – uma iniciativa lançada em 2014 pelo Departamento de Estado norte-americano.

Peixes de fora?

Há temas difíceis, que continuam a bloquear o acordo. Por exemplo, há países que defendem que os peixes não devem ser abrangidos pela protecção do futuro tratado. Receiam que ponha em causa o papel das várias organizações de gestão das pescas regionais. Mas se os peixes ficarem de fora da protecção da biodiversidade marinha, haveria uma grande lacuna. “Seria um grande buraco. A pesca é a maior pressão [da actividade humana nos oceanos]”, disse Julian Jackson.

Os cientistas estimam que 95% da diversidade biológica das espécies de peixes em alto-mar não esteja avaliada pelas organizações de gestão das pescas regionais. Por outro lado, há um número limitado de países com meios para fazer pesca no mar-alto – China, Taiwan, Japão, Coreia do Sul e Espanha têm 86% desta actividade, diz um artigo da Pew Charitable Trusts. Apenas 39 espécies de peixes representam 99,5% do pescado capturado. A grande maioria deste pescado destina-se a países de altos rendimentos. Os países mais pobres não participam nem beneficiam da pesca em alto-mar.

Uma das questões delicadas do tratado é a forma como delineará as relações com outros organismos já existentes, como as organizações que representam a indústria pesqueira. Estas definem, por exemplo, quotas de pesca para o atum. “A questão da relação com outros organismos definirá se o tratado para o alto-mar terá verdadeiramente impacto, ou servirá apenas para manter o statu quo”, afirmou Julian Jackson.

“Parte do tratado terá a ver com o uso dos recursos genéticos marinhos, e algumas delegações estão a usar esta questão para tentar retirar as pescas do tratado”, começa por explicar Julian Jackson. “Estão a tentar usar isto como um gancho para retirar as pescas do acordo, embora ninguém esteja a tentar aplicar as obrigações de distribuir por todos os países os benefícios genéticos das espécies capturadas na pesca”, adianta.

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Há países que querem que os peixes não sejam abrangidos pela protecção do futuro tratado por recearem que este ponha em causa o papel das organizações regionais de gestão das pescas Pascal Rossignol/REUTERS

O puzzle dos recursos genéticos

Quando falamos em diversidade genética das espécies do mar alto, podemos falar dos próprios animais e plantas, mas também de sequências genéticas isoladas nessas espécies, e depositadas em bases de dados internacionais e que se podem tornar valiosas só por si. Podem codificar um gene que comanda a produção de uma molécula que se tornará a base de um novo medicamento, por exemplo.

Desde 1950, foram descobertas quase 34 mil moléculas marinhas com um variado potencial comercial, diz um artigo na Scientific American. Os exemplos avançados nesta revista são díspares: desde uma proteína anticongelante extraída de um peixe de águas geladas, que melhorou a textura dos gelados, até uma enzima de um micróbio descoberta na Dorsal Médio-Atlântica (a cordilheira que existe no fundo do oceano Atlântico) que está a ser testada para criar um novo biocombustível.

De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre a Lei do Mar, cada nação tem o direito de extrair e de beneficiar da pesca feita nas águas internacionais. Mas devem partilhar os benefícios da extracção de minerais do fundo do mar – existe uma organização para o gerir, a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos. Mas falta um acordo vinculativo sobre a forma de partilhar os recursos genéticos marinhos.

Um futuro tratado para o alto-mar tem a ambição de regular esta questão. Mas isto tem sido um dos motivos para travar as negociações. “Há várias ideias em discussão, mas há pouco consenso sobre isto”, disse Julian Jackson. É um puzzle que tem sido difícil de montar.

Um caminho possível é o tomado por uma decisão na COP15, em Dezembro passado, para actualizar o Protocolo de Nagoya sobre o Acesso a Recursos Genéticos e a Distribuição Justa dos Benefícios da sua Utilização, que é um acordo adicionado à Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica. Nas águas sob jurisdição dos Estados, o Protocolo de Nagoya protege os países da bioprospecção abusiva e promove alguma justiça na exploração desses recursos. Mas dois terços dos oceanos ficam fora de jurisdições nacionais.

Sabia que...

o oceano absorve cerca de 31% das emissões de dióxido de carbono do planeta?

Inspiração em Nagoya

Além disso, o Protocolo de Nagoya dizia respeito apenas a amostras físicas. A proposta feita na COP15 é para o actualizar e incluir também as situações em que estão em causa apenas sequências genéticas, que podem estar apenas numa base de dados online. “Estamos a falar do código genético do ADN, escrito em sequências de moléculas conhecidas pelas iniciais G, A, C e T”, disse o perito. “Julgo que se está a tentar usar a mesma ideia no tratado para o alto-mar”, disse Julian Jackson.

O objectivo é que a empresa de biotecnologia que criar uma inovação a partir dos recursos genéticos da biodiversidade marinha poderá pagar os direitos disso a um fundo multilateral, em vez de ter que procurar a proveniência do ADN e tentar negociar com o país (ou os países) de origem, explicava em Dezembro o jornal Folha de São Paulo. Este sistema é inspirado na legislação brasileira.

Outra ideia, disse Julian Jackson, é criar um mecanismo de pagamento adiantado da partilha de benefícios com os recursos genéticos marinhos. “Para isso, os países fariam uma contribuição a priori para um fundo”, que poderia ser usado por exemplo para iniciar acções de conservação do oceano, disse o especialista da Pew Charitable Trusts.

Apostar na comercialização dos recursos genéticos é outra possibilidade. “O objectivo seria arranjar um mecanismo para partilhar os lucros da comercialização”, explicou Julian Jackson. Mas tem sido difícil chegar a acordo sobre uma forma de partilhar esses lucros.

Mas as discussões em Nova Iorque sobre a partilha dos benefícios dos recursos genéticos marinhos podem estar a avançar num sentido diferente do das negociações que estão a decorrer sobre propriedade intelectual em Genebra, ao abrigo da Organização Mundial da Propriedade Intelectual e do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, em inglês), salienta Julian Jackson. “Acho que há grandes preocupações sobre a compatibilidade das obrigações ao abrigo deste regime e as negociações de Genebra”, disse.

Uma questão relacionada com a partilha justa dos benefícios da exploração dos recursos genéticos das espécies de alto-mar tem a ver com a transferência de tecnologia marinha das nações mais ricas para as de menores rendimentos. “Será a ajuda dos países desenvolvidos suficientemente significativa para fazer a diferença, em termos de capacitação? Essa é uma das minhas preocupações”, sublinha Julian Jackson.

Como criar áreas de protecção

Quando existir o tratado que está a ser negociado, pretende-se que seja possível criar uma rede de áreas de protecção marinhas no alto-mar, para proteger as espécies que lá vivem. Mas isso não acontecerá logo que seja aprovado.

“Primeiro, o tratado tem de entrar em vigor. De momento, pensa-se que isso poderá acontecer depois de ser ratificado por 30 a 60 Estados-membros. A primeira Conferência das Partes (COP) terá de resolver uma série de assuntos de gestão, mas nessa altura penso que devemos ter as primeiras propostas iniciais para áreas marinhas de protecção”, explica Julian Jackson.

Enquanto tudo isto não acontece, seria importante que o tratado tivesse disposições para que se pudessem fazer acções de emergência. “Se existir um cenário em que há um risco imediato para o ambiente marinho, poderia ser possível criar uma área de protecção marinha temporária”, sugere o especialista em conservação da natureza.

Quando estiver em vigor, haverá propostas científicas, e provavelmente haverá consultas com outros organismos, outros tratados que podem ter de fazer parte do processo de tomada de decisão, ou que se considera que é melhor serem consultados, dependendo das diferentes obrigações de governação, para se começar a ter áreas de protecção marinha.

Mas como se poderia iniciar o processo para a criação de uma nova área de protecção marinha? “Podem estar envolvidos diferentes actores, cientistas, a sociedade civil, organizações regionais e talvez o sector privado, mas acho que teriam de ser os Estados a apresentar a proposta nas conferências das partes”, explica Julian Jackson.

O texto deverá também estabelecer as regras para realizar avaliações de impacto ambiental de actividades feitas no alto-mar, incluindo a exploração de recursos naturais – e esse é outro ponto em que tem sido difícil chegar a acordo. Será que teremos um tratado que estabelece padrões modernos que sirvam de referência para outras organizações? “Que adicione alguma pressão extra para que haja mais consultas e transparência no processo de avaliação dos impactos ambientais? Há ainda algumas preocupações relativamente a isso”, diz Julian Jackson, respondendo às suas próprias interrogações.