Morreu Just Fontaine, a lenda que, um dia, cantou 13 golos

Fontaine foi futebolista, mas acabou a carreira cedo. Foi cantor, mas achava que cantava mal. E teria trocado o mítico recorde de golos num Mundial, ainda em vigor, por mais uns anos de futebol.

Fontaine celebra pela selecção francesa
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Fontaine celebra pela selecção francesa Getty Images
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Just Fontaine e uma bota para comemorar o seu recorde Action Images / MSI
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Fontaine e Pelé: a bola, de chocolate, era para assinalar o 40.º aniversário do Mundial da Suécia Action Images / MSI

Quando, numa conversa de café, se discute quem foram os melhores futebolistas da história, Just Fontaine dificilmente surge na mesa. E nem sequer aparece se a discussão se limitar a avançados. E há motivos para isso, mesmo que nesta quarta-feira, com a notícia da morte do ex-goleador francês, aos 89 anos, o mundo lhe vá dar um destaque especial.

O motivo mais evidente para esse ocaso em discussões de imortalidade futebolística é a antiguidade e as parcas referências de quem foi herói na longínqua década de 50. Mas isso não explica tudo – Pelé, Eusébio ou Charlton que o digam.

O principal motivo para “Justô” ser uma névoa nestas discussões é a aura infame de quem, na música, seria definido como “one hit wonder” – e a apropriação da expressão musical não é trivial, já que Fontaine chegou a ser cantor. Já lá vamos.

Fontaine apareceu apenas num Mundial, o de 1958, e acabou a carreira cedo, aos 28 anos, devido a duas fracturas na tíbia e no perónio. “Tinha apenas 27 anos, altura em que os outros futebolistas chegam aos melhores anos da carreira. Tentei a reabilitação e nove meses depois voltei, mas o meu regresso não durou mais do que cinco jogos. Voltei a partir a perna no mesmo local. Foi terrível. A minha carreira acabara”, chegou a recordar, dizendo ainda que trocaria o famoso recorde de golos por mais alguns anos de carreira.

Apesar da má fortuna aos 28 anos, antes disso, naquele Verão de 58, na Suécia, Fontaine foi grande – o maior de sempre. Mas a imortalidade pede um pouco mais do que isso.

Goleador com as botas de outro

Outra explicação para este fenómeno de esquecimento de Fontaine é mais futebolística do que geracional – e poucos jogadores na história do futebol explicam tão bem como Fontaine a premissa segundo a qual o contexto é tão ou mais importante do que o talento.

Fontaine era definido como alguém baixo, lento e até pouco ágil. Hoje, seria impensável um jogador desta estirpe ser o melhor marcador de um Mundial – e muito menos com 13 golos, um recorde ainda em vigor, e conseguido com a famosa curiosidade de nem ter sido com as próprias chuteiras, mas sim umas emprestadas por um colega habitual suplente.

“Eu era rápido, mas não o mais rápido. Eu era bom de cabeça, mas não o melhor. Podia jogar com os dois pés, mas não era o melhor. Mas tinha um bom conjunto de qualidades, e acima de tudo, uma grande ajuda: a de ter jogado basquetebol durante toda a minha juventude. Não há nada melhor do que o basquetebol para as movimentações”, explicou um jogador que nem era o maior talento francês dessa era – esse era Raymond Kopa.

Mas foi com essas movimentações aprendidas no basquetebol que o gaulês nascido em Marrocos fez o melhor possível do contexto que tinha à volta, num futebol diferente. E por “contexto” leia-se também fortuna – porque cada minuto como ponta-de-lança francês, no Suécia 58, era suposto ser um minuto no banco.

Com a sorte da lesão de René Bliard, Fontaine chegou-se à frente – literal e metaforicamente. No ataque, assumiu o protagonismo. E ninguém, em mais de 60 anos, soube assumir o protagonismo como ele assumiu.

Os 13 golos de Fontaine num só Mundial são uma marca única que perdura. Também no ranking global de golos tem uma posição de destaque, já que apenas Miroslav Klose, Gerd Müller e Ronaldo, o brasileiro, superam os 13 golos do francês.

O cantor

É certo que Fontaine foi peça fulcral no Nice que foi campeão francês e, mais tarde, no grande Stade Reims – três títulos e uma final da Champions perdida para o Real de Di Stéfano –, mas nada do que fez pelos clubes, que não foi de desdenhar, foi, ainda assim, sequer semelhante ao que conseguiu pela selecção francesa.

Se juntarmos a esse detalhe o pouco dinheiro pago nessa era, o fim de carreira precoce, com a tal lesão na perna, e a carreira pouco profícua como treinador temos um cocktail que explica as cantorias.

O francês usava a voz que se dizia ser suave e melodiosa para cantar. Fazia-o porque precisava de dinheiro. "Sei que não sou um grande cantor, mas pagam-me muito bem e não tenho culpa que os outros, que até podem cantar melhor, me ouçam", chegou a confessar, depois de cantar com Gil Bernard.

Fora dos relvados, a grande obra de Fontaine terá sido a criação do primeiro sindicato de futebolistas franceses e a influência na melhoria das condições dadas aos futebolistas – e ganhou muito respeito, mais ainda do que o que já tinha, pelo trabalho feito nesse âmbito.

Sai, agora, aos 89 anos, como herói de sindicalismo, uma figura globalmente apreciada e acarinhada e, sobretudo, com um recorde por bater. “O meu recorde continua de pé. Acho que vou levá-lo comigo quando morrer”, chegou a dizer. E estava certo.

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