Sentença que condenou arguidos de Tancos foi anulada, mas julgamento não será repetido
Utilização de metadados como meios de prova é um dos fundamentos dos juízes do Tribunal da Relação de Évora para invalidar condenação de 11 dos 23 arguidos de há um ano.
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O Tribunal da Relação de Évora declarou nulo o acórdão do julgamento de Tancos, proferido pelo Tribunal de Santarém no início de Janeiro de 2022, confirmou o PÚBLICO, que teve acesso à decisão dos juízes desembargadores conhecida esta terça-feira. A utilização de metadados como meios de prova foi um dos fundamentos dos desembargadores para invalidarem a condenação de 11 dos 23 arguidos feita pelo Tribunal de Santarém.
O outro argumento foi o facto de o colectivos de juízes de Santarém não se ter pronunciado sobre uma questão levantada por alguns arguidos. Em causa estava a eventual nulidade do processo por violação do princípio constitucional do juiz natural, já que havia defesas a considerar que o Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa, não era o competente para controlar a investigação e para presidir à instrução do caso, que acabou nas mãos de Carlos Alexandre. Este juiz indeferiu este argumento e foi, por isso, que os colegas de julgamento consideraram que já não necessitavam de se pronunciar sobre essa questão. Mas a Relação de Évora vem dizer que essa posição está errada e que os juízes de Santarém têm que analisar esse eventual vício.
O tribunal que analisou os recursos interpostos por nove dos condenados analisou um total de nove questões diferentes apresentadas pelas defesas, só tendo dado razão aos arguidos em duas delas.
O colectivo de desembargadores, liderado pela juíza Ana Bacelar, declarou "a nulidade decorrente da utilização de prova proveniente de meio de obtenção de prova proibido", ordenando em consequência "a reformulação da factualidade considerada como provada" em mais de 220 pontos de uma condenação que se estende por 1048 pontos na lista de factos provados, como é possível contabilizar na decisão.
Porém, a anulação do acórdão de primeira instância não implica a realização de novo julgamento, assinala o advogado do principal arguido, Carlos Melo Alves. Obriga é os juízes de Santarém responsáveis pelas condenações a reescreverem o acórdão, dele retirando os factos provados com base nos dados relativos a comunicações recolhidas e guardadas pelas operadoras de telemóvel, caso não exista nenhuma outra prova desses factos, seja testemunhal ou documental. Em causa estão os registos de chamadas entre os arguidos e a sua geolocalização por telemóvel, não as escutas efectuadas pela Polícia Judiciária.
É impossível prever ao certo os efeitos que terá a reescrita do acórdão, nomeadamente se será suficiente para algum dos arguidos condenados vir a ser absolvido, equaciona Melo Alves. "Alguns crimes pelos quais foram condenados podem cair e algumas condenações baixar", antecipa. O principal arguido e autor confesso do assalto, João Paulino, sentenciado a oito anos de cadeia, está satisfeito com a decisão do Tribunal da Relação de Évora, que lhe permite continuar, por enquanto, em liberdade.
Juntamente com ele tinham sido igualmente responsabilizados por participação no assalto e condenados por terrorismo dois outros arguidos: Hugo Santos e João Pais (conhecido por “Caveirinha”). Além do assalto, o processo incidiu sobre a recuperação do material por militares da GNR e da PJM, sem conhecimento do Ministério Público, que tutelava a investigação ao assalto. E nesta parte do processo, tinham sido condenados oito militares.
O julgamento será lembrado, entre outras coisas, pela absolvição pelo crime de de prevaricação e outros crimes do ex-ministro da Defesa José Azeredo Lopes. Ainda na decisão de primeira instância, o colectivo de juízes, presidido por Nelson Barra, absolveu todos os militares dos crimes mais graves de que vinham acusados pelos procuradores (associação criminosa e de tráfico e mediação de armas).
Em Janeiro do ano passado, o tribunal deu, no entanto, como provado outro tipo de responsabilidade e condenou o major Vasco Brazão e o major Roberto Pinto da Costa, sendo os dois investigadores da Polícia Judiciária Militar, por um crime de favorecimento pessoal (três anos e seis meses de prisão) e um crime de falsificação de documento (três anos). Em resultado do cúmulo jurídico, foi aplicada a ambos uma pena suspensa de cinco anos de prisão e a proibição do exercício de funções por dois anos e meio.
Relativamente ao superior hierárquico dos majores, o coronel Luís Vieira, e aos demais militares da PJM e da GNR implicados na missão de recuperar o armamento, sem o conhecimento do MP, o tribunal manifestou-se suficientemente convicto pela prova documental e testemunhal produzida de que, também eles, aceitaram não identificar a pessoa que lhes iria entregar o material furtado: João Paulino.
Para o militar da GNR, Bruno Ataíde, ou para o major Vasco Brazão, os advogados admitiram que podia estar em causa o crime de denegação de justiça, pelo facto de o Ministério Público não ter sido informado nem da investigação que a PJM estaria a desenvolver, nem da descoberta do material, quando a PJ tinha sido nomeada para investigar; tal reduziria a pena a que foram condenados.
Para Paulino, era mais do que isso: Carlos Melo Alves tentou, nas alegações em defesa do recurso em 28 de Fevereiro, libertar Paulino do crime de terrorismo, contestando por exemplo a conclusão da primeira instância de que ele teria tentado vender explosivos a um antigo elemento da ETA espanhola, o que para Carlos Melo Alves se afigura impossível por à data já estar extinta esta organização terrorista e por ter esse crime sido imputado com base “em prova insuficiente”.
Melo Alves referia-se à prova com base numa escuta que não foi possível contraditar em julgamento por ausência daquele de quem os advogados de defesa esperavam viesse a ser uma importante testemunha — Paulo Lemos, conhecido por “Fechaduras” —, já que foi o informador da Polícia Judiciária que soube e transmitiu a esta polícia, logo em Março de 2017, que um furto de armamento estava em preparação e que seguiu as indicações da própria PJ, acusada por seu turno pelos advogados de defesa de nada ter feito para impedir o assalto.
“A nossa principal divergência tem a ver com o facto de [o tribunal] ter julgado que os militares da GNR e da PJM, a quem se deve a recuperação das armas, cometeram um crime de favorecimento mediante um acordo celebrado com o arguido Paulino, o que nunca aconteceu”, referiu, por sua vez, Ricardo Sá Fernandes, defensor de Vasco Brazão, corroborando a posição mantida ao longo de todo o processo pelos arguidos em causa.
O advogado contesta a decisão também por entender que, para concluir pela existência de um acordo ilegal com Paulino, o tribunal apenas se baseou nas declarações de "Fechaduras", ou seja, “de quem acabou por condenar como terrorista e traficante [João Paulino], o que não tem fundamento”. Com Mariana Oliveira