Há quatro estratégias para reforçar o papel dos alimentos “azuis” que estão debaixo de água

Os rios e oceanos são uma fonte alimentar valiosa, com organismos ricos em nutrientes e com menos impacto ambiental do que a maioria da carne criada em terra. Mas há formas de reforçar este recurso.

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Espera-se que em 2030 os alimentos azuis constituam cerca de 27% da fonte de ómega-3 Adriano Miranda

Um artigo publicado na revista Nature na quarta-feira reitera a importância dos chamados “alimentos azuis” e explora o papel que podem ter numa transição para sistemas alimentares mais saudáveis, justos e sustentáveis, revelando quatro estratégias que deviam ser levadas em conta como objectivos políticos em vários países. Em Portugal, referem os cientistas, “reduzir a pegada ambiental” e “salvaguardar sistemas de alimentação justos, salvaguardando os valores nutricionais”, são apontadas como as medidas mais relevantes que devem ser reforçadas.

O estudo, que conta com o apoio da iniciativa colectiva Blue Food Assessment, identifica quatro estratégias para valorizar a sustentável cadeia alimentar que se encontra debaixo de água: “Garantir que os alimentos azuis são uma fonte de nutrientes cruciais”; “que se forneçam alternativas saudáveis à carne”; “que se procure reduzir a pegada ambiental dos produtos alimentares”; e, por fim, “que se salvaguardem os valores nutricionais, economias e meios de subsistência justos sob as alterações climáticas”.

​​As vantagens nutritivas e ambientais dos “alimentos azuis” (cultivados ou capturados em ambientes de água doce e marinhos, incluindo animais aquáticos, plantas e algas)​ tendem a ficar fora das discussões contemporâneas sobre sistemas e políticas alimentares, conclui a equipa liderada por investigadores da Universidade de Estocolmo. Nestes debates, a representação desta cadeia alimentar fica reduzida “a alguns tipos de peixe em recomendações dietéticas e em projecções da procura”.

Em Portugal, o objectivo apontado como o mais relevante é o de reduzir a pegada ambiental da produção de alimentos aquáticos, seguida pela necessidade de garantir sistemas de alimentação justos e dignos, com atenção a todos os intervenientes, desde o pequeno produtor ao consumidor, juntamente com medidas que também salvaguardem os valores nutricionais das produções.

Os objectivos propostos neste estudo não são um plano concreto de acção. São linhas gerais de comportamento que os governos e instituições devem seguir para alcançar o melhor funcionamento de “sistemas alimentares azuis”. Estas directrizes podem passar por criar incentivos públicos à investigação, a projectos de sensibilização dietética e até mesmo políticas económicas de desincentivo à produção de alimentos com uma grande pegada ecológica.

A Blue Food Assessment, uma iniciativa internacional, conta com a colaboração de mais de 100 cientistas de várias nacionalidades e, segundo o site da organização, procura “apoiar os decisores políticos na avaliação de oportunidades, tradeoffs e adopção de soluções para construir sistemas alimentares saudáveis, equitativos e sustentáveis”.​ Ao PÚBLICO, Beatrice Crono, uma das autoras do artigo, garante que esta organização “fará o que puder para assegurar que os quatro papéis que podem ser cientificamente ligados aos ‘alimentos azuis’ sejam colocados no centro da política alimentar nas discussões da coligação”.

O contributo destes alimentos para a saúde humana, nutrição, empregos, cultura e impacto ambiental variam entre espécie e local, reconhecem os cientistas, acrescentando que estas variações naturais “são agravadas por estruturas sociais que contribuem para um aumento da desigualdade”. Assim, os benefícios dos “alimentos azuis” não são iguais em todos os países.

Por isso, o estudo examina a relevância de cada estratégia para cada país, acrescentando detalhes sobre os custos e benefícios associados a estes propósitos.

Reduzir o défice de nutrientes presentes em “alimentos azuis”

A investigação da Universidade de Estocolmo aponta um défice nutritivo de vitamina B12 e ómega-3 relativamente alto a um nível global. Os “alimentos azuis” são ricos nestes nutrientes e, se forem acessíveis e consumidos em quantidades adequadas, podem ser a solução para este problema.

Para ajudar a combater a deficiência destes nutrientes, a produção de alimentos aquáticos deve ser intensificada. No entanto, alertam os cientistas, é preciso que o aumento de produção seja feito de forma sustentável e que garanta o valor nutricional e baixo custo dos alimentos. Actualmente, alguns destes “alimentos azuis” são mais caros do que outras proteínas animais, especialmente nos países em desenvolvimento.

Para aumentar a produção aquática de forma sustentável e sem perder qualidades nutritivas os investigadores sugerem a criação de “incentivos públicos para direccionar o investimento, a pesquisa e o desenvolvimento” para criar, por exemplo, rações nutritivas e com uma baixa pegada ecológica.

Uma alternativa saudável às carnes vermelhas

Em países como a China, a Argentina, o Brasil e os Estados Unidos e na Europa do Leste, observa-se uma “transição nutricional prejudicial” onde as tendências de consumo de carnes vermelhas continuam a subir, alerta a investigação da Universidade de Estocolmo.

Tendo em conta que o consumo de carnes vermelhas pode levar a doenças cardiovasculares, é importante promover o consumo de “alimentos azuis” nestes países, o que pode ser feito, recomendam os investigadores, através de programas de sensibilização dietética ou até mesmo de políticas económicas de desincentivo à produção de carnes vermelhas.

O artigo avisa, porém, que “promover um papel dos ‘alimentos azuis’ na saúde se baseia no pressuposto de que estes podem substituir algum consumo de carnes vermelhas”, o que ainda não foi bem documentado.

Há, no entanto, alguns dados publicados sobre a substituição de carnes vermelhas por carnes brancas, lê-se no artigo. “O aumento do consumo de aves de capoeira em comparação com a carne de vaca, durante 60 anos, sugere que as carnes brancas e os frutos do mar podem substituir a carne vermelha.”

Diminuir a pegada ambiental do consumo e produção alimentar

Muitos sistemas de produção, dos muito diversos “alimentos azuis”, resultam em “pressões ambientais mais baixas”, comparadas às da produção animal terrestre, adianta ainda o estudo. Assim, a substituição parcial de carnes dos ruminantes é apresentada como um caminho para reduzir a pegada ambiental na produção alimentar.

Sistemas de aquacultura, como bivalves (mexilhões, ostras, vieiras) e algas, que não precisam de alimento, têm poucas emissões de gases com efeito de estufa (GEE), de nitrogénio e de fósforo e exigem menos recursos de água doce e terra. Por isso, a produção destes organismos tem uma pegada ecológica muito baixa.

No entanto, os sistemas como o do salmão, que necessitam de uma ração constituída por peixes selvagens, contam com uma taxa de conversão alimentar muito alta, isto é, precisam de uma quantidade muito grande de outros peixes para a sua alimentação. Por isso, a equipa de investigação da Universidade de Estocolmo sugere que se procurem formas de melhorar a aquacultura com recurso a rações, evitando usar outras espécies de peixe como alimento. Como, por exemplo, a ração à base de algas, de subprodutos da pesca ou farinha de insectos.

O que sugerem os investigadores é que se desenvolvam “estruturas de apoio à governação, infra-estruturas e acesso financeiro a novas tecnologias e a rações de alta qualidade para os pequenos produtores” e também “uma melhor gestão das pescas, o uso de energia livre de fósseis e a mudança para equipamento de baixo impacto”.

Meios de subsistência, economias, saúde e sustentabilidade

Os alimentos aquáticos são, em muitos países, um pilar da cultura alimentar e das economias e têm uma função crucial de segurança nutricional e alimentar. Além disso, estes alimentos são uns dos bens essenciais básicos “mais comercializados a nível global”. O artigo acrescenta ainda que estes alimentos representam uma porção substancial da receita de exportações de muitos países, e que a sobrevivência de 800 milhões de pessoas depende deste sistema alimentar.

Mas, apesar de este sistema alimentar garantir empregos e alimentos nutritivos, o verdadeiro lucro, como as receitas de exportação, “fluem predominantemente para empresas de escala industrial que controlam cadeias de fornecimento global”, alertam os investigadores. Observam-se então desigualdades ao longo do sistema alimentar, onde os intervenientes de pequena escala são “subvalorizados e marginalizados no processo de tomada de decisões, ameaçando os seus meios de subsistência e a capacidade de alterar as condições ambientais”, acrescentam.

Para reduzir a desigualdade neste sistema alimentar os investigadores sugerem o “financiamento, infra-estruturas e governação que dêem voz e direitos a todos os intervenientes”. Assim, defendem os autores, a aplicação de políticas que se focam nos impactos ambientais ou em ganhos económicos têm que ter também sempre em atenção as consequências que podem ter no bem-estar humano.

Texto editado por Andrea Cunha Freitas