“Portugal é um gigante com a sua área marinha na Europa e só tem 2,5% sob protecção”

Comissário do Ambiente Virginijus Sinkevicius diz que a estratégia europeia de protecção da natureza tornará florestas mais resilientes aos fenómenos extremos que a Europa viveu nos últimos verões.

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O comissário europeu Virginijus Sinkevicius MATILDE FIESCHI

Virginijus Sinkevičius chegou ao 10.º piso do Centro Europeu Jean Monnet em passo acelerado e pronto para ser entrevistado. O lituano é o comissário europeu para o Ambiente, os Oceanos e a Pesca e fez uma visita a Portugal de dois dias com uma agenda preenchida entre Lisboa e Porto. O périplo contou com reuniões com comissões parlamentares e ministros, entre os quais o ministro do Ambiente Duarte Cordeiro. No Porto, esteve no Palácio de Cristal no evento da assinatura do “Compromisso Verde com o Planeta”, do sector do calçado.

O mar é um dos temas importantes para o comissário e que neste momento está em alta. Na segunda-feira, iniciou-se uma nova ronda de conversações no âmbito das Nações Unidas, em Nova Iorque, para os países chegarem a um acordo sobre a protecção dos oceanos no alto-mar, fora da jurisdição dos Estados. "É crucial termos esse acordo", assegura ​Sinkevičius. Sobre a pesca e o pacote de medidas que foram divulgadas esta semana, ao nível da Comissão Europeia, para a protecção das áreas marinhas protegidas e a transição energética do sector, o responsável diz que a descarbonização é “o calcanhar de Aquiles” das pescas.

A entrevista abarcou ainda a situação do lobo na Europa, as medidas europeias para combater a desertificação dos solos e a necessidade de Portugal aumentar as áreas marinhas protegidas, já que o país é um “gigante” em termos marítimos. Mas a conversa ocorreu no dia anterior ao primeiro aniversário da invasão russa à Ucrânia e o tema da guerra impunha-se: “Os mísseis podem falhar o alvo, mas nunca falham os estragos no ambiente.”

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Virginijus Sinkevicius esteve numa visita de dois dias em Portugal MATILDE FIESCHI

A guerra na Ucrânia faz um ano. O que mudou na política ambiental da UE desde então?
Não diria que houve uma mudança nas políticas de ambiente por causa da guerra. A maior mudança foi por causa da energia. A propaganda russa dizia que a Europa ia gelar [no Inverno], ia ficar privada de recursos energéticos, a indústria iria parar porque tomámos uma postura forte de apoio à Ucrânia. Um ano depois, vemos que gerimos as coisas muito bem. Diminuímos em 40% o gás russo. Agora temos apenas cerca de 9% de gás russo na nossa mistura de gás. Vimos aumentos de 41% de projectos de energia solar e eólica, de 40% em bombas de calor, de 15% em veículos eléctricos. Provámos que estamos unidos e podemos lidar com uma crise tão inesperada.

Como é que a União Europeia (UE) pode ajudar a Ucrânia a recuperar dos danos ambientais causados pela guerra?
É uma dor enorme ver vidas perdidas e infra-estruturas destruídas todos os dias, mas também o ambiente. Os mísseis podem falhar o alvo, mas nunca falham os estragos no ambiente. Foram colocadas minas em grandes áreas de florestas, ou houve incêndios. A estimativa do custo de ecossistemas destruídos já atinge 57 mil milhões de euros. Os russos atingem deliberadamente instalações de tratamento de água, de energia, armazéns de químicos e tudo isso vai parar à natureza. Por isso, o que já fizemos: a Ucrânia é o primeiro país fora da UE que se juntou ao nosso programa Life, é o nosso fundo ambiental e climático. A Ucrânia e a sociedade civil podem candidatar-se e implementar projectos de restauração da natureza. Desenvolvemos um plano chamado Fénix, em que angariámos sete milhões de euros alocados para a Ucrânia dentro dos programas Horizonte e Life.

A comissão apresentou agora um pacote de medidas para melhorar o sector da pesca e da aquacultura. Quais são os objectivos?
O futuro das pescas vai depender de dois factores: o que se apanha, que depende dos ecossistemas, e os combustíveis fósseis. Infelizmente, a nossa frota está muito dependente dos combustíveis fósseis. O aumento recente de mais de três vezes do diesel marinho significa que não há razão para se operar e a frota fica no porto. Por isso, temos de encontrar uma forma de descarbonizar a nossa frota. Esse é o calcanhar de Aquiles. Agora conseguimos ajudá-los com medidas de gestão de crise. E espero que esses fundos alcancem o sector da pesca o mais rápido possível. Mas temos de assegurar que eles são cada vez menos dependentes dos combustíveis fósseis. E isso vai permitir-lhes modernizar e assegurar que o lucro é maior.

Uma das medidas propõe uma diminuição total da pesca de arrasto nas áreas marinhas protegidas até 2030. Esta data não é demasiado tardia?
Temos de entender qual o papel da pesca por arrasto. É a coluna dorsal da pesca europeia e não se pode banir de um dia para o outro.

Mas estamos a falar de regiões protegidas.
Pedimos aos Estados-membros que até 2024 preparem um plano. Depois vamos reavaliar esses planos. Se virmos que os esforços não são suficientes, então a comissão poderá iniciar um processo de legislação.

Qual é a posição da UE em relação às negociações sobre o tratado do alto-mar?
Estabelecemos a Coligação de Alta Ambição e há dois dias dei as boas-vindas à Coreia do Sul como membro 52, antes disso foram os Estados Unidos. Conseguimos ter um grupo de países e falar a uma só voz. É extremamente importante porque nos apercebemos da importância da negociação da BBNJ (sigla em inglês para a Biodiversidade Marinha para além da Jurisdição Nacional). Sem um acordo, não temos hipóteses de proteger áreas marinhas ou de implementar o que foi alcançado em Montreal (no Canadá, em Dezembro último, durante a 15.ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica COP15). Por isso, é crucial termos esse acordo, as negociações estão a andar.

Que resultados esperam que saiam daqui?
A protecção suficiente do alto-mar e um conjunto de regras claras em relação à operação de barcos no alto-mar, que neste momento não temos.

A COP15 foi considerada um sucesso. Quais são os maiores desafios daqui para a frente?
A fase de implementação é a mais importante, para que em 2030 não estejamos numa posição em que ela não foi implementada. Na UE, vamos ver o que é que ainda nos falta implementar e depois vamos pôr estas propostas na dianteira do nosso trabalho legislativo. Em segundo lugar, vamos trabalhar de perto com a comunidade internacional e assegurar que haverá fundos dedicados ao acordo, essa é a parte crucial.

Qual é a estratégia da União Europeia para esse objectivo?
Dobrámos o financiamento que fizemos à biodiversidade. Há uma contribuição significativa da Alemanha e da França, e estamos muito gratos por isso. Outros Estados-membros estão a contribuir um pouco menos. É muito importante ter medidas para atrair investimentos privados. Estamos a falar activamente com bancos de investimento internacionais, com filantropos que também estão dispostos a financiar, mas querem ver projectos concretos. Por isso, estamos a tentar mapear esses projectos. Queremos que eles se dirijam aos países mais vulneráveis, aqueles que estão a precisar mais do financiamento. Frequentemente, esses países não têm capacidade administrativa sólida para absorver os fundos e estamos a ajudá-los a construir essa capacidade.

O número de refugiados climáticos está a aumentar. Estima-se que em 2050 sejam 1,2 mil milhões de pessoas. Qual é a resposta da UE?
A nossa resposta clara é o Pacto Ecológico e temos de o implementar. Não nos podemos esquecer que não é só sobre a Europa, é sobre as acções globais. Vemos que já não estamos sozinhos na intenção de atingir as zero emissões em 2050. Mais e mais países estão a juntar-se. Essa é a única forma. Claro que podemos falar das medidas mais pequenas, acerca da integração de refugiados. Mas isso iria pôr enormes pressões nas nossas fronteiras.

Temos visto incêndios, cheias e altas temperaturas na Europa, fenómenos cada vez mais associados às alterações climáticas que põem em risco o restauro dos ecossistemas. Como é que estratégia de biodiversidade para 2030 vai enfrentar esse problema?
A estratégia de protecção de 30% [da área terrestre e marinha] até 2030 tem muito para oferecer. As florestas que estão mais equipadas e bem geridas têm muito mais resiliência. Estamos com uma proposta de monitorização da floresta em mãos. Em segundo lugar, há os nossos recursos hídricos. Se os ecossistemas aquáticos são mantidos em boas condições, especialmente as águas interiores, podem ajudar nas medidas de prevenção. É muito importante que os Estados-membros preparem os planos e partilhem as melhores práticas das medidas que tornam a floresta resiliente. E eliminar as práticas que infelizmente aumentam a sua vulnerabilidade.

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Virginijus Sinkevicius fez uma visita de dois dias a Portugal MATILDE FIESCHI

Quais práticas?
Plantar florestas de um tipo de árvore. Práticas de corte e limpeza que destroem os ecossistemas florestais e o solo.

Portugal tem muitas áreas de Rede Natura 2000 mas frequentemente falta uma conservação activa. Podemos esperar que haja uma pressão por parte da Comissão Europeia neste tipo de situações?
Estamos em diálogo constante com Portugal acerca da implementação da Rede Natura 2000. Acho que 20% da área protegida em Portugal é um bom número, porque quando falamos em 30% estamos a falar ao nível da União Europeia e não de cada país. Onde Portugal poderia fazer um trabalho melhor é assegurar uma área de protecção marinha maior. Porque Portugal é um gigante com a sua área marinha na Europa e só tem 2,5% sob protecção.

Como garantir que essas áreas sejam protegidas?
É preciso preparar um plano de gestão e implementá-lo. Para isso, a capacidade administrativa é extremamente importante para que se tenham recursos humanos para se implementar totalmente as medidas de conservação.

Portugal enfrenta um problema de desertificação do solo. Mas nos últimos anos, têm aumentado as culturas intensivas, como os olivais. Que medidas podemos esperar da Comissão Europeia para ajudar numa transição mais sustentável do uso dos solos?
Estamos a finalizar a nossa proposta sobre a protecção do solo. Queremos ter o solo ao mesmo nível de protecção da água e do ar. Porque a degradação do solo poderá ter um enorme impacto e ameaçar a nossa segurança alimentar, e temos de ajudar os nossos agricultores a transitar para práticas mais sustentáveis. A nova política agrícola comum dedica-se principalmente a estas medidas e os agricultores têm novas oportunidades para transitar para novas práticas.

Uma resolução recente do Parlamento Europeu diminuiu a protecção do lobo argumentando que a sua população estava a aumentar e a provocar mais danos aos agricultores e produtores de animais. Mas 12 ministros do Ambiente, incluindo Duarte Cordeiro, enviaram-lhe uma carta pedindo a manutenção do estatuto de protecção do lobo. O que lhes vai responder?
A legislação funciona para os dois lados, essa é a minha resposta. E reduzir o estatuto de protecção do lobo não vai resolver a questão. Se queremos gerir uma população de lobos, o estado do ecossistema tem de ser bom. No entanto, as isenções existem e, se um lobo ameaçar o bem-estar do agricultor, esse indivíduo pode ser removido.

Mudando de assunto, vai ser necessário diminuir o consumo de plástico?
Sim. O plástico é um óptimo material, que provavelmente vai estar connosco para sempre. No entanto, coloca enormes pressões no ecossistema por ser usado durante um tempo muito curto. Demos os primeiros passos para nos livrarmos de alguns problemas do plástico de uso único, mas temos de ir mais longe. Propusemos a directiva das embalagens para nos livrarmos das embalagens que são absolutamente desnecessárias, como as pequenas embalagens de champô nos hotéis.

Está na recta final do seu mandato. Qual foi a maior conquista destes anos e qual é o maior desafio que tem pela frente?
O Pacto Ecológico. É a maior conquista porque conseguimos pô-lo a andar, de uma forma sólida, e é a resposta a muitas das crises. O maior desafio será implementá-la. Mas estou optimista. O nosso objectivo de reduzir 55% dos gases com efeito de estufa até 2030 é sólido. A maioria das nossas emissões de dióxido de carbono vem da energia e a transição energética é inevitável. Agora, olhando para 2050, a descarbonização não vai ser tão directa e fácil, porque vai necessitar de uma transição significativa da sociedade. Em algumas áreas vamos necessitar de nova tecnologia, como no combustível para o sector marítimo e o da aviação.