Uma história sobre luto.
Na Idade Média, a preparação para a morte subscrevia à ars (bene) moriendi. Um guia de estilo espiritual visava salvar a alma do purgatório, levando-a para o céu instantaneamente. Salus hominis in fini consistit.
Em Maio do ano passado, faleceu a minha mãe precoce e subitamente. Não, ela não deixou um guia de estilo. Enquanto família, adivinhámos um funeral, o que fazer com o corpo, em que cemitério o deixar. Adivinhámos os passos burocráticos para anunciar legalmente que esta pessoa já não existia. As idas às Finanças, ao Banco, ao Notário. Nesse momento, aprendi que morrer é difícil, estranhamente trabalhoso.
Morrer custa. O inevitável tem um preço e rouba tempo. Afinal a primeira ida às Finanças para declarar o óbito, (que leva consigo tempo de espera em filas intermináveis) não basta. Depois de um funeral e do “aluguer” num ossário, é preciso completar uma miríade de outras tarefas, desnecessariamente manuais e, talvez deliberadamente, contra-intuitivas onde é preciso sentar-me com essa realidade e anunciar vezes sem conta a diferentes entidades as palavras que quase começam a perder significado depois de tantas vezes repetidas: “Sim, esta pessoa que eu amo morreu. Sim, esta pessoa que eu amo morreu. Sim, esta pessoa que eu amo morreu.”
O pior momento da minha vida transforma-se numa tarefa, no quotidiano. Isso não apazigua. Mas não me posso demorar demasiado a deitar-me nesse buraco. Há peças do puzzle burocrático para se juntar, que me obriga a pôr o dedo na ferida incessantemente. Tantas foram as vezes que saí de mãos a abanar de um edifício das entidades responsáveis pela morte, mais confusa do que quando lá entrei porque as indicações que o trabalhador com quem falei anteriormente não são as mesmas que este trabalhador diz precisar.
Três meses antes do falecimento da mãe, a Organização Mundial de Saúde reconheceu o luto prolongado como um transtorno. Esta foi a mais recente adição ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) publicado no mesmo ano. Este distúrbio consiste, para adultos, num luto persistente depois de um ano e de seis meses para crianças e adolescentes.
Na minha situação, já passou quase um ano desde o facto. Ainda não consigo imaginar uma vida fora dele. Talvez não seja totalmente possível. Mas se existe uma arte para a morte, certamente haverá uma arte para o luto. Ainda não a encontrei escrita e talvez seja por isso que me fazem crer que não estou a colaborar. Existe um prazo subentendido: a simpatia pós-morte estende-se mais ou menos até umas semanas após o funeral. Depois disso, espera-se que a vida “normal” prossiga. Quando a tristeza inicial se transforma em irritabilidade, já não sou uma pessoa em luto, mas sim uma pessoa errática. A engrenagem da normalidade não pára. O processo de luto não é compatível com um mundo optimizado como o de hoje. E o luto torna-se, então, patológico, “persistente”.
E o tempo passa. As logísticas da morte parecem ser impenetráveis. O tamanho da burocracia impede a vida a quem vive ainda. A reintegração na vida normal, nos interesses pessoais, nas relações interpessoais é, com certeza, uma arte, mas uma arte solitária. Ninguém me avisou que morrer era tão laborioso.