Um palmarés de valores seguros
Prémio do Júri a Mal Viver, de João Canijo, é o reconhecimento merecido de um cineasta com créditos firmados que inexplicavelmente nunca dera o salto para o patamar seguinte.
Escrevemos aqui há um par de semanas que esta edição 2023 da Berlinale tinha sido uma edição de valores seguros — e de certo modo o palmarés do júri presidido pela actriz Kristen Stewart confirma-o, atribuindo os seus prémios a nomes feitos que assinaram alguns dos melhores filmes do festival, mesmo que em configurações inesperadas.
É mesmo nessa linhagem que se deve entender o Prémio do Júri a Mal Viver, de João Canijo: é o reconhecimento merecido de um cineasta com créditos firmados que inexplicavelmente nunca dera o salto para o patamar seguinte, e com um filme que merece plenamente dar esse salto (apesar de a sua recepção crítica por parte das revistas do meio não ter sido grandemente unânime).
Ao seu lado no palmarés da competição principal, voltamos a encontrar nomes seguros: Angela Schanelec (melhor argumento por Music); Philippe Garrel (melhor realização por Le Grand Chariot); Christian Petzold (Prémio Especial do Júri por Afire); Nicolas Philibert (o autor do fenómeno Ser e Ter, Urso de Ouro por Sur l’Adamant). Como se os “jovens cineastas” que fizeram parte da selecção competitiva não tivessem proposto títulos ao nível destes (temos pena ainda assim que o júri tivesse deixado de fora Past Lives de,Celine Song ou Tótem, de Lila Avilés). Tudo gente boa, tudo bons filmes, tudo muito bom mas tudo muito pouco surpreendente.
Não é um palmarés transcendente, mesmo que seja extremamente defensável: estavam, de facto, aqui alguns dos melhores filmes do festival (o que também reflecte uma selecção menos impressionante do que em anos anteriores). E precisamente pela quantidade de nomes com currículo premiados, a impressão que fica é a de um festival morno (que, na verdade, foi), seguro mais do que desafiador, sem deixar de reflectir, discreta e ligeiramente, a dimensão activista, política, que Berlim sempre tem.
O Adamant do documentário de Philibert que venceu o Urso de Ouro é um centro de dia no Sena que acolhe adultos com distúrbios mentais, um tema social que está longe de ser “fracturante” como a Ucrânia, o Irão ou os direitos trans muito em foco este ano. Não que tenham sido esquecidos: o prémio de melhor interpretação principal coube à espantosa Sofía Otero pelo filme da basca Estíbaliz Sologuren sobre uma menina transgénero, 20,000 Espécies de Abejas, e o prémio especial do júri da paralela Encounters a Orlando, My Political Biography, a celebração trans de Paul B. Preciado.
Aliás: a ousadia que pode ter faltado no palmarés da Competição está toda nos prémios da Encounters, com o Urso de Ouro a Here do belga Bas Devos e o Prémio do Júri em simultâneo a Orlando e Samsara de Lois Patiño, que reinventam com encanto e inteligência o que pode ser um filme no século XXI. Num ano em que as duas competições se confundiram demasiadas vezes, os palmarés acabam por definir muito melhor o que cada uma é suposto ser: “clássica” no caso do concurso principal, “ousada” na Encounters.
Resta celebrar o Urso de Prata de João Canijo e esperar que isso permita ao seu cinema obter a tracção internacional que sempre mereceu e nunca encontrou. Há algo de justiça no seu prémio que não pode nem deve ser ignorado — e, ao lado destes nomes, é muito maior do que parece.