Tejo já é a paragem mais importante para os maçaricos-de-bico-direito. E que influência é que isso tem?

O investigador português Afonso Rocha integra uma equipa da Universidade da Extremadura, em Espanha, que está a estudar espécies migradoras no estuário do Tejo.

Foto
Nuno Ferreira Santos

Quem passa nas estradas que envolvem os arrozais do estuário do Tejo nem se apercebe, mas por estes dias os talhões cobertos de água estão habitados por milhares de maçaricos-de-bico-direito (Limosa limosa), que se preparam para a longa viagem até aos locais de reprodução, no Norte da Europa.

Atento à sua localização e com várias noites perdidas para tentar capturar, temporariamente, algumas destas aves, colocando-lhes pequenos transmissores, o biólogo Afonso Rocha integra uma equipa de investigadores da Universidade da Estremadura (Uex), em Espanha, que quer perceber como é que as alterações e perda de habitat nos tradicionais locais de paragem das aves migradoras estão a afectar o seu stress oxidativo. É que isso pode influenciar o futuro destas espécies. E, neste momento, o Tejo é o principal local de paragem para os maçaricos.

“Historicamente, os locais mais importantes para a espécie como zona de paragem, durante a rota de migração, eram Doñana, no Sul de Espanha, e em Portugal o estuário do Tejo, mas devido à seca e à utilização cada vez maior de água pela agricultura, nessas zonas de Doñana, e também nos arrozais da Extremadura [espanhola], o habitat disponível tem estado a reduzir-se e o Tejo, nos últimos anos, também aumentou a sua área de arrozal e tem estado a aumentar a sua importância a nível populacional para a espécie, nota o biólogo.

Foto
Macaricos-de-bico-direito nos arrozais das Lezirias do Tejo Nuno Ferreira Santos

Aqui podem chegar bandos com 60 mil aves, correspondendo a 70% de toda a população reprodutora na Holanda [agora designada Países Baixos], explica Afonso Rocha numa pausa na busca dos vários bandos de maçaricos que se dispersam pelos arrozais, binóculos apontados a um grupo que descansa ao longe, não muito distante de um bando mais pequeno de íbis-preto (Plegadis falcinellus).

A quebra do número de aves que utilizam o país vizinho como ponto de paragem para recuperar forças, antes de rumarem ao Norte da Europa, é enorme, diz o investigador português. “Nos arrozais da Extremadura, embora existam flutuações, podia haver entre cinco mil a 20 mil aves, este ano contabilizamos apenas 1500. Em Doñana os números são ainda menores, menos de mil aves, e chegou a haver ali cerca de 50 mil. Chegou a ser das zonas de paragem mais importante e muitas das que ali ficavam agora vêm para o Tejo.

Entre arrozais da Extremadura e o estuário do Tejo

A seca, a transformação dos solos agrícolas para culturas frutícolas, como os pêssegos, ou os amendoais, em simultâneo com o abandono de muitos arrozais, fazendo desaparecer os campos alagados, são as principais razões para a perda de habitat dos maçaricos-de-bico-direito em Espanha. E essa perda levou a equipa de investigadores da Uex a decidir não fazer as capturas da espécie apenas nos arrozais da Extremadura, mas a dividir-se, e a trabalhar também no Tejo, onde Afonso Rocha está encarregado dessa função.

Foto
Macaricos-de-bico-direito no Tejo Nuno Ferreira Santos

Além disso, o estuário tem outra vantagem – por ali cruzam-se duas “subespécies” do maçarico-de-bico-direita, aquela que o biólogo designa por “nominal”, e que vem do Senegal, parando no Tejo para descansar. É daí que parte depois para se reproduzir em países como os Países Baixos e a Alemanha, percorrendo em toda a rota cerca de cinco mil quilómetros. A outra subespécie, a “islândica”, passa o Inverno aqui, e está também prestes a partir para se reproduzir na Islândia e, em menor número, no Reino Unido, percorrendo uma distância mais curta, na ordem dos três mil quilómetros.

Um facto que permite comparar eventuais diferenças entre ambas. “Se as aves que vêm do Senegal, por exemplo, forem perdendo áreas de paragem e tiverem de fazer deslocações mais longas, estão capacitadas em termos fisiológicos ou vai haver consequências? Têm capacidade de compensar o stress oxidativo ou não?” É a perguntas como estas, feitas por Afonso Rocha, que os investigadores da Uex estão a tentar dar resposta, com a investigação iniciada há um ano e que vai prolongar-se pelo menos até 2024.

Biólogo Afonso Rocha Nuno Ferreira Santos
O processo de colocação dos transmissóres é complexo e nem sempre corre bem Nuno Ferreira Santos
NFS Nuno Ferreira Santos
Biólogo Afonso Rocha NFS Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Biólogo Afonso Rocha Nuno Ferreira Santos

O stress oxidativo mede-se avaliando o equilíbrio entre os radicais livres e os antioxidantes – se estes componentes entrarem em desequilíbrio, isso pode alterar a fisiologia da espécie e, consequentemente, a sua conservação. Por isso, no Tejo e na Extremadura espanhola, estão a capturar-se algumas aves, para lhes colocar transmissores e tirar uma amostra de sangue. Esta última permitirá avaliar esse stress e os transmissores vão possibilitar seguir a ave e ajudar na segunda fase da investigação, que irá levar Afonso Rocha e os colegas aos Países Baixos.

É aí que, se tudo correr bem, vão localizar estas aves que estão agora a ser marcadas, podendo testá-las novamente após a migração e analisando também o sangue das crias que venham a ter, para perceber se “alguma informação é passada à descendência”, no que diz respeito à eventual compensação do stress oxidativo.

Explicado assim, até parece fácil, mas o processo é complexo e está sujeito a muitos factores que podem ditar o seu insucesso.

Foto
Macaricos-de-bico-direito no Tejo Nuno Ferreira Santos

Minúsculos transmissores no dorso

Desde logo, a captura das aves não é fácil. Afonso Rocha tem 26 transmissores para colocar e ainda só tinha conseguido instalar, com êxito, oito dos pequenos aparelhos no dorso de maçaricos fêmea (são maiores do que os machos e, por isso, são as escolhidas pelos biólogos para levarem os minúsculos aparelhos que não podem ultrapassar mais do que 3% do seu peso).

Depois, há sempre a possibilidade de algo correr mal no dia a seguir a ter colocado alguns transmissores, o biólogo estava preocupado com uma das aves, porque depois de aceitar o aparelho e se ter afastado, a voar, começou a transmitir o sinal sempre de um local fixo, ali próximo.

Afonso Rocha temia que algo lhe tivesse acontecido, e tinha razão acabou por encontrar apenas os restos da ave e o transmissor (que poderá ser reutilizado). A suspeita é que ela tenha batido num dos cabos de electricidade e tenha caído, sendo depois devorada por uma ave de rapina.

E, como se isto não bastasse, é preciso que os aparelhos não tenham falhas, que as aves consigam chegar aos locais de reprodução e que sejam bem sucedidas na gestação e manutenção de crias (que podem ser alvo de predadores e não sobreviver). A dificuldade fica expressa nos números do trabalho de campo já iniciado no ano passado nessa altura foram colocados 21 aparelhos, 13 aves que os tinham foram identificadas, posteriormente, nos Países Baixos, e destas só foi possível recapturar sete. Ainda assim, Afonso Rocha diz que o primeiro ano “correu bem”, e, com o aumento de dispositivos conseguido este ano, espera-se que 2023 seja ainda melhor.

Foto
NFS Nuno Ferreira Santos

Por enquanto, o vento não tem permitido que haja uma nova noite dedicada à captura e colocação de transmissores nas aves, mas a experiência terá de ser repetida, para tentar colocar todos os aparelhos. O tempo já não é muito. A partir de Março, os maçaricos-de-bico-direito começam a preparar-se para partir.

Os arrozais do estuário do Tejo vão ficar menos cheios de vida. Pelo menos até ao final do Verão, quando, se não houver alterações significativas, os grandes bandos estarão de volta, de passagem ou para ficar por ali até que passe o Inverno e seja hora de partir de novo.