A invasão da Ucrânia pela Rússia causou uma crise energética que fez a União Europeia encarar de frente a sua dependência dos combustíveis fósseis russos. “Acelerou de forma significativa a transição energética”, disse ao PÚBLICO Artur Patuleia, analista português do think tank E3G, que se foca nas alterações climáticas. Mas também impulsionou a busca de fornecedores alternativos de combustíveis fósseis, criando novos compromissos.
“Paradoxalmente, esta guerra torna mais provável que a União Europeia chegue à neutralidade climática em 2050”, comentou Thomas Pellerin-Carlin, director do programa europeu do I4CE – Instituto de Finanças Climáticas, um think tank francês.
“Antes da guerra, a coligação política que apoiava a acção climática tinha uma narrativa de progresso económico que não tinha sido testada. Agora foi posta à prova. Os combustíveis fósseis são caros, e o gás fóssil vai continuar a ser caro num futuro previsível. Além disto, existe uma narrativa de liberdade e segurança”, sublinhou ao PÚBLICO Thomas Pellerin-Carlin, por e-mail.
“A necessidade urgente de reduzir a exposição da UE aos preços elevados fez da redução do consumo de gás um elemento essencial da segurança europeia. Posicionou o Pacto Ecológico Europeu como um pilar fundamental para a segurança da UE”, continuou Artur Patuleia.
“A energia eólica e a solar geraram mais de um quinto da electricidade da UE (22%), ultrapassaram pela primeira vez o gás fóssil (20%) e atingiram níveis superiores à electricidade produzida a partir do carvão (16%)”, destacou o analista português.
A guerra acelerou a tendência para o aumento do investimento em energias renováveis e da eficiência energética. “Pouco antes do início da guerra, as instituições europeias estavam a negociar uma meta de 40% de fontes de energia renovável e 9% de eficiência energética até 2030. Em resposta à guerra, a Comissão Europeia aumentou a ambição das metas para 45% e 13%, como parte do plano RePowerEU, que pretende tornar a UE independente dos combustíveis fósseis russos”, explicou Artur Patuleia.
Apoio à energia verde
“O impacto directo dos preços do gás nas facturas de energia das famílias e das empresas traduziu-se num amplo apoio dos europeus a soluções de energia verde. O Eurobarómetro de Dezembro de 2022 mostra que 83% dos europeus consideram urgente investir em energias renováveis”, salientou Artur Patuleia.
“A energia limpa tornou-se a forma mais barata de energia no ano passado. Este é um desenvolvimento positivo, que vai trazer o fim mais rápido do carvão e dos combustíveis fósseis. Dá-nos esperança de que a reconstrução da Ucrânia possa ser um exemplo de energia limpa e segura, depois de ganharmos a guerra”, comentou com o PÚBLICO, por e-mail, Svitlana Romanko, directora da organização ambientalista ucraniana Razom We Stand, que luta pelo embargo dos combustíveis fósseis russos.
Os governos nacionais reforçaram as suas metas climáticas. “Portugal acelerou a sua ambição de atingir 80% de energias renováveis, passando de 2026 para 2025. A Alemanha terá 80% de energias renováveis até 2030 e pretende ter 100% até 2035”, adiantou Artur Patuleia.
Embora tenha havido grandes subidas na geração de electricidade a carvão nos primeiros meses após o início da guerra, no total de 2022 houve apenas uma subida de 7% em relação a 2021, pois a partir de Setembro começou a reduzir-se o uso de carvão para gerar electricidade. Esta descida acompanhou o movimento de queda no consumo de electricidade na União Europeia a partir do Outono, atribuído às medidas postas em prática nos Vinte e Sete para poupar energia, mas também ao facto de o Inverno ter sido bastante suave.
“A guerra acelerou claramente a transição energética. Tornou a opção pelos combustíveis fósseis cara e insegura, e reanimou o apoio moral e político à transição verde através da eficiência energética e capacidade de produção de energias renováveis”, explicou Thomas Pellerin-Carlin.
“Substituímos quase 75% das importações de gás russo, ultrapassámos as nossas expectativas. A procura de gás da União Europeia desceu mais de 10%. Houve um impacto real na vida das pessoas”, sublinhou, numa entrevista por vídeochamada, Sandrine Dixson-Declève, co-presidente do Clube de Roma, uma organização que junta intelectuais e líderes empresariais para debater temas de política, economia, ambiente e desenvolvimento sustentável.
A revista The Economist estima mesmo que se podem ter avançado entre cinco a dez anos no processo de transição.
Corrida ao gás
Mas há um outro lado na resposta europeia: uma corrida a fornecedores alternativos de combustíveis fósseis, para compensar o que deixou de ser comprado à Rússia. Estão a ser construídos vários terminais de gás liquefeito. “Qualquer nova infra-estrutura que se construa para gás natural é andar para trás. Levam tempo a ser construídas, e criamos uma nova dependência, que é a de termos de nos assegurar que dêem lucro”, comentou Sandrine Dixson-Declève.
Tobias Gehrke, que dirige a iniciativa de Geoconomia do European Council on Foreign Relations, sublinhou que esta é uma tendência de curto prazo. “É improvável que esta corrida dure muito tempo ou tenha dimensão suficiente para contrariar a explosão das energias renováveis”, disse, por e-mail. Gehrke frisou que 2022 foi marcado por um recorde nos investimentos para a transição energética: “Chegou pela primeira vez a um bilião (milhão de milhões) de dólares.”
A organização ambientalista Greenpeace reconheceu que houve progresso da UE para a transição energética. “Mesmo políticos conservadores apelaram ao aumento das metas de energias renováveis, às quais tinham sempre resistido”, disse Silvia Pastorelli, activista da Greenpeace para o clima e energia na União Europeia, numa resposta por e-mail. “No entanto, uma parte importante da forma como a Europa está a combater a dependência do gás e do petróleo russo foi procurar fornecedores alternativos aos combustíveis fósseis russos – prendendo a Europa a contratos longos e projectos de infra-estruturas de energias ‘sujas’”, afirmou.
Esta busca de novos fornecedores de energias fósseis, e os lucros-recorde que as empresas petrolíferas tiveram em 2022 deram fôlego a projectos para a exploração de combustíveis fósseis: um relatório apresentado na Cimeira do Clima das Nações Unidas (COP27) pela organização não-governamental alemã Urgewald concluía que o número de projectos para exportar gás natural liquefeito pode duplicar nos próximos anos – emitindo gases com efeito de estufa equivalentes às emissões de todo o continente africano actualmente.
Além disso, a Urgewal concluiu que só em África há 200 empresas que neste momento estão a explorar projectos de extracção de gás e petróleo.
A República Democrática do Congo (RDC) realizou em Julho um leilão de 30 blocos de exploração de gás e petróleo. Abriu zonas da segunda maior floresta tropical do mundo à prospecção, o que pode ser fatal para a sua conservação e libertar enormes quantidades de gases com efeito de estufa. “Isto acontece num contexto em que os combustíveis fósseis, incluindo o petróleo e o gás, estão no centro das questões globais da paz e da estabilidade por causa do conflito Rússia-Ucrânia”, afirmou o Presidente da RDC na altura, citado pela Reuters.
Perpetuar energia fóssil
Sandrine Dixson-Declève reconheceu o problema. “Estamos a substituir algumas das importações russas investindo em nova capacidade de gás natural liquefeito. Em particular, estamos a incentivar alguns países africanos a continuar a promover a produção de gás natural e, em alguns casos, também petróleo e carvão”, enumerou.
“Portanto, estamos a livrar-nos da nossa dependência do gás russo, mas, por outro lado, pelo menos no curto prazo, estamos a criar novas dependências noutros países”, afirmou. “Esta mensagem que estamos a passar, ao tornar possíveis investimentos na exploração de gás natural, carvão e petróleo, não é positiva”, sublinhou Sandrine Dixson-Declève, que integra o conselho geral e de supervisão da EDP.
“As compras de emergência de gás natural liquefeito da Europa aumentaram a utilização de carvão em países de menor rendimento, especialmente na Ásia. A Europa deve evitar causar estes impactos globais, concentrando-se na redução estrutural da sua procura de gás e no aumento do investimento em energias renováveis. O Conselho Consultivo Científico Europeu sobre as Alterações Climáticas alertou para o risco de estes contratos de longo prazo poderem criar dependências de carbono de longo prazo”, salientou Artur Patuleia.
“Algumas empresas de combustíveis fósseis, embora não muitas, vão ficar para trás nos investimentos necessários para abandonarmos as fontes energéticas poluentes. Têm demasiado dinheiro investido na exploração [de petróleo e gás] para não os extrair”, observou Alice Hill, especialista em alterações climáticas, energia e ambiente do Council on Foreign Relations, nos Estados Unidos.
“Mas à medida que surjam catástrofes relacionadas com as alterações climáticas e ganhar reconhecimento a ligação entre os combustíveis fósseis e os impactos no clima, o espaço político no qual as empresas de combustíveis fósseis se movem pode ir-se estreitando. Isso levará os investidores a cortar laços com os combustíveis fósseis”, estimou, num comentário por correio electrónico.
Porém, isso pode não ser o fim da história. “Se esses activos simplesmente forem vendidos a empresas menos escrupulosas, as emissões [de gases com efeito de estufa] vão continuar na trajectória ascendente”, alertou Alice Hill.
Reciclar para electrificar
Mas para se fazer a transição energética há uma corrida a novas matérias-primas necessárias para a electrificação – como o lítio. Corre-se o risco de recriar os modelos de exploração dos combustíveis fósseis?
“As matérias-primas necessárias para a transição climática estão ainda mais concentradas do que o petróleo e o gás. A sua extracção correlaciona-se com países que têm estruturas de governação fracas”, começou por dizer Tobias Gehrke. “Apesar disso, os custos ambientais de aumentar a extracção de matérias-primas para tecnologias limpas são pequenos, em comparação com uma expansão continuada dos combustíveis fósseis. Uma mina de carvão produz muito mais emissões de dióxido de carbono”, exemplificou.
Sublinhou ser fundamental apostar na reciclagem. “Se os governos garantirem o aumento da indústria de reciclagem, haverá uma maior disponibilidade de matérias-primas dentro de dez a 20 anos. Temos de estar prontos a reciclar, quando o ciclo de vida de produtos como as baterias dos veículos eléctricos chegar ao fim”, explicou Tobias Gehrke.
“O mundo está a entrar numa nova era industrial. O recente Plano Industrial do Pacto Ecológico Europeu é uma oportunidade para os governos desenvolverem capacidade industrial verde”, salientou Artur Patuleia. Isto traz um desafio para Portugal.
“Portugal estará confrontado com a escolha entre a continuação de um modelo centrado na exportação de hidrogénio verde de baixo custo e lítio processado para a indústria do Norte da Europa, ou na implementação de uma política industrial orientada para o desenvolvimento de cadeias de valor da indústria verde a nível nacional”, observou o analista. “O aço verde e a produção de veículos eléctricos são dois exemplos de cadeias de abastecimento integradas da indústria verde que poderiam ser desenvolvidas no país, aproveitando as vantagens comparativas de Portugal em termos de custos de hidrogénio verde e disponibilidade de lítio”, recomendou.
Riscos do ano 2
O segundo ano da guerra pode ser mais complicado. “A crise energética pode intensificar-se no Inverno de 2023, se a procura global ultrapassar a oferta – se a reabertura da China, após o fim da política de ‘covid zero’, consumir muitos dos recursos mundiais de energia”, disse Tobias Gehrke. Isto pode aumentar os investimentos de longo prazo em combustíveis fósseis e emperrar a transição energética.
Mas o impacto da guerra da Rússia contra a Ucrânia na energia e na alimentação traz riscos para o próprio processo democrático, salientou Sandrine Dixson-Declève. “O maior risco de segurança que vejo é que vamos ter instabilidade nas nossas democracias, se não lidarmos devidamente com os problemas dos cidadãos, que temem não ter acesso a energia e a alimentação a um preço que possam pagar”, salientou.
“Isto tem o risco potencial de uma viragem para o populismo, da chegada ao poder de governos mais autocráticos, que não reflectem os valores do Pacto Ecológico Europeu ou o Pilar Europeu dos Direitos Sociais. Isso poderia ser um grande risco de segurança para o projecto europeu”, alertou Sandrine Dixson-Declève.