O colonialismo português ainda “persegue” as religiões afro-brasileiras
“A raiz da intolerância religiosa que afecta as religiões afro-brasileiras há 500 anos tem origem na colonização do Brasil”, diz o fotógrafo Gui Christ. M’Kumba retrata quem ainda resiste à opressão.
A que se associa, em Portugal, a palavra “macumba”? Embora a Infopédia a cole, primeiramente, à designação genérica dos cultos religiosos afro-brasileiros, uma terceira entrada, essa de sentido lato, associa o termo a “magia negra”, “feitiçaria”, “feitiço”. Este facto não é um pormenor e ganha um maior peso no Brasil, onde 2% da população se assume praticante de religiões de matriz africana – percentagem que corresponde a cerca de 4,2 milhões de pessoas.
Por detrás da simples definição da palavra “macumba” há uma série de camadas que toca os fenómenos da violência associada à intolerância religiosa e ao crescimento das facções mais radicais do cristianismo no Brasil – sem deixar de fora a herança cultural do colonialismo português, de cariz profundamente católico.
O projecto M’Kumba, que o fotógrafo brasileiro Gui Christ vem desenvolvendo desde 2020 para a revista National Geographic, e que continua em curso, foca-se nas práticas religiosas de matriz africana no Brasil, dando a conhecer os elementos humanos e ritualísticos que as compõem e chamando a atenção para o crescente número de ataques sofridos pelos crentes no seio de uma sociedade fortemente polarizada, em que a religião é não raramente utilizada como arma política.
“Aqui, no Brasil, as religiões de matriz africana são chamadas ‘macumba’”, explica o brasileiro, em entrevista ao P3, por videoconferência, a partir de São Paulo. “É um termo muito pejorativo. É o equivalente a dizer ‘magia negra’.” A palavra "kumba", em quicombo, uma das línguas faladas na região centro-africana, significa “curandeiro”, “homem sábio”, “senhor da palavra”, elucida Christ; o “M”, por sua vez, refere-se ao colectivo. Assim, o significado literal de “macumba” estará próximo de colectivo de curandeiros, de homens sábios ou de senhores da palavra.
Os ataques aos terreiros
Nas imagens de Christ surgem sacerdotes e crentes que “fazem oferendas a divindades afro-brasileiras”, sumariza. “Fotografei pessoas das novas gerações que sentem orgulho na sua religiosidade, realizando os seus rituais.” Os trajes e os objectos representados remetem para tributos aos vários ‘deuses yorubás’, como o orixá dos mares Yemanjá ou o senhor das chagas Obaluae, entre outras. ‘M’kumba’ é um trabalho onde revelo quem são os actuais kumba.”
As pessoas que praticam estas religiões, levadas para o Brasil por africanos escravizados durante o período da colonização portuguesa, têm sido alvo de ataques violentos, sobretudo nos últimos três anos. De acordo com o relatório do Disque 100, serviço de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de denúncias de violações de direitos humanos que pertence ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania do Brasil, as situações de intolerância religiosa têm vindo a aumentar – entre 2019 e 2021, o número de casos mais do que duplicou no país, afectando, sobretudo, os praticantes de religiões de matriz africana. Em 2021, no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde se concentra o maior número de denúncias, foram os praticantes dessas religiões os mais afectados por episódios de intolerância.
“As pessoas acham que a violência religiosa consiste apenas em proibir uma pessoa de frequentar um templo”, refere Gui Christ. “Mas muita gente perde o emprego, há pessoas a sofrerem ataques violentos perpetrados por crentes de facções radicais cristãs.” São inúmeros os casos de ataques a terreiros de umbanda e candomblé, locais de culto das religiões de matriz africana, que são alvo de notícia no Brasil. São frequentes os casos de intimidação, de destruição de propriedade e os ataques à integridade física de quem detém e frequenta os terreiros.
O próprio fotógrafo, que se assume crente e praticante de religião de matriz africana, diz ter sido, em 2019, vítima de um ataque religioso. “Estava na rua, dirigia-me a um evento religioso, todo vestido de branco e com um cordão [típico da religião que pratica]”, narra. “Um carro subiu o passeio para me atingir; eu tive de saltar para longe, para o chão, para me proteger.”
Gui diz que não conseguiu ver a matrícula do automóvel e que, por isso, não apresentou queixa formal. “Mas consegui ver um autocolante no carro que dizia ‘Só Jesus salva’. Aquilo podia ter sido um acidente, mas o carro seguiu, não parou, como seria expectável. Na minha opinião, tratou-se de um ataque.”
No que toca à problemática da intolerância religiosa no Brasil, o papel da divisão racial tem vindo a diluir-se. Os Censos brasileiros de 2010 indicavam que 52% dos brasileiros que são crentes do umbanda e do candomblé se autodeclaravam negros (“pretos” ou “pardos”); 54% dos umbandistas, no entanto, são indivíduos brancos, altamente escolarizados, que vivem em grandes centros urbanos. Por outro lado, dados da Datafolha de 2022 indicam que 60% dos evangélicos são negros.
A “cristofobia” de Bolsonaro
O segundo grupo mais acossado por episódios de intolerância religiosa, de acordo com o mesmo relatório do Disque 100, é o de pessoas de religião católica apostólica romana. Porém, a Folha de São Paulo refere, num artigo publicado em Janeiro deste ano, ser possível que exista uma “manipulação desses dados”, decorrente de um apelo de Jair Bolsonaro, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2020, “pelo combate à cristofobia”. Esse apelo do então Presidente poderá ter estimulado os cristãos do país a reportar casos de intolerância religiosa, sugere o artigo, dando origem a um desequilíbrio estatístico atípico face aos resultados de anos anteriores, quando o fosso entre o número de denúncias dos dois grupos era expressivamente maior.
Existe, na opinião de Gui Christ, uma relação clara entre a ascensão evangélica e a escalada do número de ataques às religiões afro-brasileiras. É necessário, no entanto, ressaltar uma diferença fundamental entre as vertentes católica apostólica romana e a protestante (sendo na última que se inserem os evangélicos). Se a primeira chegou ao Brasil pela mão dos colonizadores portugueses, a segunda terá chegado, de acordo com várias fontes (nem sempre consensuais), por via de outros países europeus, como França, Países Baixos, Alemanha, Inglaterra. Em Portugal, o protestantismo ganhou maior expressão já no século XIX.
As denominações evangélicas que hoje dominam o Brasil chegaram ao país já no século XX. A Assembleia de Deus, fundada por suecos, e a Congregação, por um italiano, surgem no início do século; mais tarde, seguem-se a Igreja Quadrangular, de origem norte-americana, e as congregações Deus É Amor, Brasil para Cristo e Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Entre o final da década de 1970 e o início dos anos 80, nascem a Igreja Renascer em Cristo e a comunidade Sara Nossa Terra, entre outras.
Para Gui, o livro Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demónios?, do fundador e dirigente da IURD Edir Macedo, é um dos exemplos mais flagrantes da mensagem de intolerância que é pregada em determinados contextos religiosos. Na obra, que vendeu mais de três milhões de exemplares e cuja distribuição chegou a ser suspensa (foi reeditada em 2019), pode ler-se a seguinte passagem: “Chamam-se orixás, caboclos, pretos-velhos, guias, espíritos familiares, espíritos de luz, etc. Dizem ainda ser exus, espíritos de crianças, médicos e poetas famosos, mas na verdade são anjos decaídos, na diabólica missão de afastar a humanidade de Deus (...).”
Edir Macedo declarou, em 2018, o seu apoio à candidatura à presidência de Jair Bolsonaro, o que poderá ter influenciado o sentido de voto dos milhões de fiéis da sua Igreja.
Deuses mais humanos
Determinadas características das religiões afro-brasileiras poderão “chocar” com valores cristãos, explica Christ. “Porque as divindades africanas são muito humanizadas, não reflectem uma imagem de perfeição, como a de Jesus.” As divindades afro-brasileiras têm defeitos e virtudes, à semelhança dos comuns mortais. Incluindo, por exemplo, “casos homoafectivos”, algo que as religiosidades cristãs condenam.
A divindade Zé Pelintra, outro exemplo, é “considerada um espírito boémio e protector dos pobres”. “Ele é adorado no Brasil, é a divindade afro-brasileira mais adoptada por todos.” Chico Buarque presta-lhe homenagem na Ópera do Malandro, de 1978. A figura representa as prostitutas, os ladrões, os mendigos, em suma, os marginalizados. Serviria de divindade aos narcotraficantes evangélicos que atacam os terreiros, não fosse a postura adversativa que adoptam perante símbolos afro-religiosos.
“O Brasil ainda é de maioria católica, mas estima-se que em 2030 venha a ser de maioria evangélica”, refere Gui, alertando para o efeito que essa viragem possa acarretar ao nível da política brasileira. É de ressalvar, no entanto, que também existem facções evangélicas progressistas que rechaçam as convicções políticas dos grupos conservadores, que se afirmam anti-racismo, defensoras dos direitos das mulheres e dos grupos LGBTQI+ – ainda que, sublinhe-se, continuem a ser fortemente minoritárias.
Haverá sinais de mudança? Numa manobra inesperada, Edir Macedo afirmou recentemente que “a posição mais cristã é perdoar o Presidente eleito [Lula da Silva]”, que terá sido, afinal de contas, “eleito por vontade de Deus”, mesmo que contra as suas preces.
A herança colonial
“Sem querer atacar os portugueses”, para Gui Christ a raiz da intolerância religiosa que afecta as religiões afro-brasileiras “há 500 anos” tem origem na colonização do Brasil por Portugal. Já nos primeiros capítulos do II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, de 2023, disponível no biblioteca online da UNESCO, se lê que, no Brasil, “a representação religiosa foi construída no período colonial, a partir do encontro entre a religião cristã [do colonizadores] e as religiosidades africanas [recém-chegadas] em solo brasileiro, onde adeptos das religiões africanas, com as suas culturas e representações, configuram um mal a ser combatido pelos não adeptos destas religiosidades”.
Segundo o relatório, o processo de colonização, que teve por base a conversão forçada dos colonizados ao cristianismo, esteve assente e foi fomentado “pelo racismo e pelo preconceito”. O relatório indica que, mais recentemente, esse mesmo conjunto de valores é instigado “durante o crescimento dos grupos religiosos evangélicos pentecostais e neopentecostais e o acirramento das guerras espirituais”.
Gui continua. “Quando os portugueses colonizavam o Brasil, chamavam ‘macumba’ aos encontros desses feiticeiros [praticantes de religiões de matriz africana]. ‘A macumba é ruim’, diziam. Isso ficou estigmatizado durante séculos no Brasil e ainda é. São cinco séculos dessa perseguição. Só que isso é só a ponta do icebergue. Na verdade, toda a causa do racismo, seja de pele mesmo ou religioso, tem origem no processo colonial.”
A notícia foi actualizada às 15:52; o serviço Disque 100 não está sob alçada do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, como anteriormente referido, mas sim sob a do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.