Um cineclube de crianças em que o cinema é ferramenta para a cidadania

Escolhem filmes, negoceiam com distribuidoras, programam. São verdadeiras cineclubistas – mas têm entre 9 e 12 anos. Este sábado, o Passos Manuel acolhe uma sessão de cinema do projecto Cineclube 8MM.

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Mariana e Malena são duas das seis crianças que integram este cineclube para maiores de oito anos e com participação gratuita Manuel Roberto

Não há pais, professores ou qualquer outro adulto com palavra acima da delas. E isso é parte importante da magia. “As crianças é que fazem tudo, os adultos só estão ali para nos dar dinheiro”, brinca Malena, resumindo o espírito do Cineclube 8MM, um projecto nascido de uma parceria entre o Cineclube do Porto e a Casa da Animação com o apoio do Clube Fenianos Portuenses e em que a autonomia dos mais novos, entre os 9 e os 12 anos, é levada muito a sério. Malena e Mariana, 11 e 10 anos, são duas das seis meninas deste cineclube para maiores de oito anos. Estudantes do 5.º ano no Liceu Francês Internacional do Porto, a dupla ganhou mais um dia por semana para estar junta. E muito tem aprendido. Este sábado, às 17h30, o Passos Manuel, no Porto, acolhe uma sessão de cinema programada pelas pequenas cineclubistas. A curta-metragem Ice Merchants, de João Gonzalez, nomeada para os Óscares, é uma das propostas. A entrada é gratuita.

Foi a mãe de Mariana quem lhe falou da ideia de integrar um cineclube. Não foi difícil convencer a filha – sobretudo depois de o fazer também com a mãe de Malena, a amiga inseparável. “Achei que seria engraçado organizar sessões de cinema”, diz. São elas quem, com total autonomia, lideram todo o processo. “Dão-nos nomes de empresas de filmes e nós escolhemos a partir daí. Escrevemos a pedir os filmes e depois vemos para fazer uma selecção”, resume Mariana.

A ideia andava há anos a marinar na direcção do Cineclube do Porto. A instituição havia retomado a actividade em 2010, depois de alguns anos de portas fechadas, e burilava planos de aproximação aos mais novos, retomando uma tradição da casa, em que as sessões infantis foram “escolas de cinema para muitos espectadores e até realizadores portugueses”, sobretudo nos anos 60.

As palavras são de José António Cunha, um dos dois produtores adultos que acompanham as crianças do Cineclube 8MM, sempre com uma regra de ouro: interferir o mínimo possível. Na interrogação de como trabalhar com o público infantil do século XXI para lá da “postura passiva de ver filmes”, chegaram a uma ideia, conta: “Centrar o projecto na capacidade de autonomia. Fazerem aquilo que nós fazemos também, mas com os critérios e experiência deles.”

Depois de alguns pilotos sem consequências, um projecto do Clube de Fenianos do Porto proporcionou a estrutura necessária para testar a ideia. No Verão passado, nasceu o Cineclube 8MM. Mariana, Malena, Sofia, Alice, Gabriela e Clara, com idades entre os 9 e os 12 anos, são os rostos deste cineclube aberto a maiores de oito anos – a participação é gratuita, bastando contactar o Cineclube do Porto.

Mais do que uma oficina

Aos sábados, o grupo reúne-se e “trabalha”. Não se confunda a actividade, porém, com uma comum oficina para crianças. Ali não há uma partilha pedagógica de conhecimento saída “do alto da sabedoria adulta”, brinca José António Cunha, da direcção do Cineclube. “Isto é uma coisa delas, não nossa.” O objectivo foi criar uma “estrutura de pessoas muito jovens” – não de futuros cineclubistas, mas de presentes. “Já são cineclubistas. Têm um orçamento, escolhem filmes, fazem tudo o que nós fazemos.”

Aprender a escrever emails estruturados – e a fazer “discursos concisos” – é uma das aprendizagens mais importantes já adquiridas por Mariana. Dos adultos recebem apenas os contactos e alguma orientação. “Depois são elas que escrevem, com todos os emojis que um email pode ter”, brinca José António Cunha.

Nesta vida de cineclubistas – até agora fizeram três sessões nos Fenianos –, já foram obrigadas a desistir de um filme desejado por falta de orçamento, mas também já conseguiram convencer uma distribuidora francesa a ceder-lhes uma obra sem qualquer custo.

Conceber programas, seleccionar filmes, programar, produzir folhas de sala, fazer comunicação, projectar filmes. Tudo isso, diz José António Cunha, ultrapassa o cinema – transformado em ferramenta para o exercício da “cidadania”. Se o projecto contribuir para formar novos públicos para a sétima arte, será boa notícia. Mas a filosofia do Cineclube 8MM ultrapassa esse fim: “Não sei se precisamos que estas seis pessoas sejam espectadoras ou autoras de cinema em alguma medida, precisamos é que sejam boas cidadãs e tenham sentido crítico.”

Admitindo a ansiedade para a sessão de sábado, as duas amigas mostram-se confiantes no trabalho feito. A partir das 17h30, o Passos Manuel passa DoduO Rapaz de Cartão, de José Miguel Ribeiro, Vicky and Sam, de Nuno Rocha, Ice Merchants e Nestor, de João Gonzalez, Entre Sombras, de Alice Azevedo e Mónica Santos, Surpresa, de Paulo Patrício, O Homem do Lixo, de Laura Gonçalves, Eduardo Manos Fijas, de Jim Sorribas Soler, e Fantasmas, de J. Luis Fernández. As sessões são apresentadas pelas pequenas cineclubistas – assim como os debates com os realizadores e com o público.

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