Há vítimas de abusos sexuais na Igreja “em crise” após divulgação de relatório

A associação Quebrar o Silêncio tem recebido chamadas de vários homens, vítimas de abuso sexual, “em crise”. As notícias recentes obrigam-nos a “reviver constantemente as suas próprias histórias”.

Foto
O relatório Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica em Portugal aponta para pelo menos 4815 vítimas Rui Gaudêncio

A associação Quebrar o Silêncio, de apoio a homens vítimas de abusos sexuais, recebeu cinco pedidos de ajuda de vítimas da Igreja católica nos últimos três dias, apontando que as notícias estão a deixar as vítimas em crise.

Em declarações à agência Lusa, o presidente da associação revelou que, desde que a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica em Portugal divulgou publicamente, na segunda-feira, o seu relatório final, várias vítimas contactaram a associação. "Só nestes três dias nós recebemos cinco casos relacionados com os abusos sexuais na Igreja", todos homens acima dos 50 anos, revelou Ângelo Fernandes.

Segundo o responsável, alguns destes homens já tinham contactado a própria Comissão Independente, e todos "estão em crise" por causa dos testemunhos que ouviram e das notícias que leram, tendo contactado a Quebrar o Silêncio à procura de apoio psicológico e de ajuda para gerir "o que sentem relativamente ao abuso".

"Quando a pessoa está em crise, o que fazemos é uma estabilização emocional para que estes homens possam, pelo menos, sentir alguma forma de alívio, antes de começar o apoio psicológico", explicou Ângelo Fernandes. De acordo com o presidente da Quebrar o Silêncio, "esta semana tem sido particularmente intensa para os homens que foram vítimas de violência sexual na infância".

"Temos tido relatos de homens que não conseguem descansar porque estão constantemente a ser confrontados com estas notícias de abuso sexual", adiantou, acrescentando que isso tanto afecta homens vítimas de abusos sexuais na Igreja, como noutros contextos.

“Reviver” os abusos

Ângelo Fernandes apontou que, para muitas destas pessoas, o contacto com as notícias mais recentes sobre os abusos sexuais na Igreja Católica obriga-as a "reviver constantemente as suas próprias histórias". "Isto é muito difícil de gerir para estes homens. Temos visto homens que acabam por sofrer com o aumento de pensamentos sobre o abuso, memórias indesejadas, a ansiedade atinge níveis muito altos", apontou, sublinhando que esta semana tem sido particularmente dolorosa para os sobreviventes.

Nesse sentido, o responsável deixou o apelo para que às notícias sejam adicionados os contactos das três associações especializadas no apoio às vítimas de violência sexual, como a Quebrar o Silêncio (910 846 589/apoio@quebrarosilencio.pt), a Associação de Mulheres contra a Violência (213 802 165/ca@amcv.org.pt) ou a UMAR (914 736 078 / eir.centro@gmail.com).

Na opinião de Ângelo Fernandes, o momento é oportuno para voltar a discutir o aumento do prazo de prescrição deste tipo de crimes, lembrando que já em 2021 a associação tinha colaborado na redacção de uma proposta de lei que alargava o prazo para que as vítimas abusos sexuais na infância possam apresentar queixa para 15 anos após a vítima completar os 35 anos, ou seja, até aos 50 anos.

Actualmente, em Portugal, as vítimas de crimes sexuais contra crianças só podem apresentar queixa até cinco anos depois de completarem 18 anos, ou seja, até aos 23 anos, um prazo que a Quebrar o Silêncio considera insuficiente pelo facto de "a maioria das pessoas abusadas sexualmente na infância demorar mais de 20 ou 30 anos a partilhar a sua história de abuso".

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica sugeriu na segunda-feira que se aumente até aos 30 anos de idade das vítimas o prazo para que estas possam apresentar queixa relativa a abusos sofridos na infância.

O relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja recebeu 512 testemunhos validados, o que permitiu a extrapolação para a existência de, pelo menos, 4815 vítimas, tendo sido enviados 25 casos para Ministério Público.