Daniel Sampaio: “Se fosse bispo e tivesse ocultado casos [de abusos], resignaria”
Psiquiatra Daniel Sampaio defende “via verde” para apoio psicológico às vítimas e revela que algumas pessoas abusadas esperam um gesto do Papa Francisco quando visitar Portugal.
Daniel Sampaio, psiquiatra e membro da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI), que esta segunda-feira terminou funções com a apresentação do relatório final que revelou 512 testemunhos validados de abusos sexuais no seio da Igreja em Portugal, numa realidade total que estima ascender às 4815 vítimas, defende que as comissões diocesanas falharam na detecção de alegados crimes contra menores, que foram ocultados sistemicamente. "Agora ninguém pode dizer que este problema não existe", sublinha, em entrevista no programa Hora da Verdade, do PÚBLICO e da Renascença.
Há uns meses estávamos aqui neste mesmo estúdio e na altura o trabalho da comissão ia a meio e referiu que nenhum bispo iria ficar por entrevistar. O certo é que houve dois (o bispo de Beja e o administrador diocesano de Setúbal) que não foram entrevistados. O que é que aconteceu?
Aconteceu que não responderam ao apelo. São razões individuais. Não vou comentar nenhum caso em particular.
O mais interessante das entrevistas com os bispos é um certo afastamento deste problema, como se este problema nunca lhes tivesse passado pelas mãos. Isso é impossível!
Agora isso já não vai acontecer. É uma das coisas boas deste relatório: ninguém pode dizer que este problema não existe.
Deixe-me fazer uma partilha pessoal: se eu fosse bispo e estivesse agora confrontado com esta situação em que eu tivesse tido uma ocultação importante de uma vítima, eu pediria a demissão. Pediria a resignação porque acho muito difícil um bispo, a partir de agora, continuar a fazer de conta que nada se passou.
A minha posição sempre foi de grande respeito pela Igreja e, como psiquiatra, durante muitos anos num serviço público, vi o enorme papel, do ponto de vista social e de apoio aos doentes mentais, que a Igreja tem. E quero aqui ressaltar justamente isso. Tive muitos doentes graves que foram apoiados por sacerdotes. A Igreja tem um papel social importantíssimo. Mas agora, julgo eu, estamos num momento de viragem e é preciso que cada pessoa que está na hierarquia da Igreja diga assim: “Eu errei, sou capaz de mudar ou não sou capaz de mudar? Sou capaz de verificar que tive aqui um erro de ocultação importante, sistemático? Então, se isso aconteceu, eu não estou em condições de continuar".
A Igreja esteve pouco empenhada neste processo ou não tão empenhada quanto era esperado pela Comissão?
A segunda parte. Acho que podia ter estado mais empenhada. Houve uma coisa que a Igreja podia ter feito mais que foi um apelo ao testemunho. No final das missas podia ter havido um apelo ao testemunho porque, como a amostra demonstra, não chegamos a muitas franjas da população. Não chegámos a uma população menos preparada do ponto de vista da literacia da Internet e mesmo de literacia em geral acerca das suas vidas.
Mas sente que o facto de a Igreja caminhar a ritmos diferentes e ser muito plural é um entrave para o combate dos abusos?
Sim. A Igreja não é homogénea como nenhuma instituição importante é homogénea.
Há sacerdotes que dizem que não se deve ter relações sexuais antes do casamento. E há sacerdotes que dizem uma coisa um bocadinho diferente, que pode haver relações sexuais desde que sejam integradas num projecto de amor. É uma sensibilidade diferente, importante.
A minha esperança é como, felizmente este relatório teve um grande impacto, a Igreja se sinta um pouco forçada a tomar posições e a comunicação social tem um papel relevante que é não deixar morrer este assunto.
Considera que houve uma ocultação sistémica dos abusos? Por quem?
Completamente sistémica, pela hierarquia da Igreja. Não há abuso sexual sem ocultação.
Defendo, a nível pessoal, que a ocultação foi ainda mais patente na Igreja pela dificuldade que a Igreja tem em ligar todos os temas da sexualidade, por exemplo. E é preciso falar sobre isso.
A questão do celibato é importante. No meu ponto de vista, era importante que se discutisse esse tema e que se ouvissem as vozes das mulheres na Igreja. Seria muito importante. Mas isso não tem nada que ver com abuso sexual. Tem que ver com a pulsão sexual, com instinto sexual que existe em todos nós.
E por que é que defendem a criação de uma nova comissão, tendo em conta que existem comissões diocesanas em todas as dioceses portuguesas para esse efeito?
As comissões diocesanas podem ter um papel sobretudo importante na prevenção junto das famílias, na prevenção junto das escolas, em espalhar a notícia sobre este tema. Tenho muitas dúvidas que as comissões diocesanas sejam estruturas capazes de acolher as vítimas. Os testemunhos que tivemos existiram porque nós fomos uma comissão completamente independente, As pessoas sentiram isso também pela credibilidade dos seus membros, porque éramos pessoas conhecidas e também pela seriedade do trabalho. Tivemos a capacidade de independência e de abertura ao exterior.
As comissões diocesanas são estruturas da Igreja, é muito difícil uma vítima poder partilhar o seu sofrimento com uma estrutura que vê ligada à Igreja. Por exemplo, ouvi dizer que vai haver agora uma bolsa de psiquiatras e psicólogos adstritos à comissão diocesana. Acho bem, mas não chega.
A Comissão propôs que a "Igreja assuma o tratamento das vítimas actuais". Considera que a reparação financeira será necessária?
Um aspecto muito interessante das 512 vítimas cujo testemunho está validado é que só uma falou, e muito vagamente, na hipótese de indemnização. Isso tem a ver com a forma como nós encaramos o problema uma vez que centrámos o nosso trabalho nas vítimas e na reparação psicológica. Provavelmente podíamos ter ido por uma via mais legal, no sentido da indemnização, mas acho que isso foi muito a posição que nós tomamos e que julgo foi certa.
Evidentemente que é possível que nalguns casos faça todo o sentido, mas foi uma situação que não ocorreu. O que ocorreu foi exactamente o contrário. Foi, em primeiro lugar, a profunda devastação psicológica destas pessoas e a necessidade de a Igreja assumir o tratamento dessas pessoas. Muitas destas pessoas não tiveram resposta no SNS para as suas queixas e tiveram de recorrer ao privado.
A minha posição pessoal é que a Igreja deve imediatamente fazer protocolos com os serviços de psiquiatria de todos os distritos no sentido de criar uma espécie de via verde para que uma vítima que esteja em sofrimento possa imediatamente ser vista por um psiquiatra.
No caso dos abusadores, muito provavelmente é preciso fazer as duas coisas: um tratamento farmacológico e um tratamento psicoterapêutico. É preciso protocolar nos serviços distritais de psiquiatria a imediata assistência a estas pessoas e depois, no caso de não haver resposta do sistema público, a Igreja custear o tratamento em privado.
Deve haver, na sua opinião, uma homenagem da Igreja a juntar ao pedido de perdão que já foi feito?
Nós [comissão] achamos que sim e fizemos uma proposta. Aliás, existe já um esboço feito pelo arquitecto Siza Vieira, pro bono, que fez uma proposta de memorial para as vítimas. Eu considero isso importante porque é uma forma de o assunto continuar bem vivo e de as pessoas se reverem nessa essa situação.
De acordo com o relatório, sete vítimas acabaram por se suicidar. O que é que aconteceu nestas situações de tão extremo que tenha levado a uma situação tão trágica?
Sim, isso é muito importante. O que a investigação nos diz é que o abuso sexual é um factor de risco para a tentativa de suicídio e para o suicídio. Não podemos afirmar que uma pessoa se suicida só por uma causa.
Nesses sete casos não sei exactamente o que se passou em cada um, mas seguramente o abuso sexual foi um factor de risco e depois houve circunstâncias da vida da pessoa, provavelmente depressão, pouco apoio familiar, dificuldades profissionais, dificuldades na esfera afectiva e sexual, que muitas dessas pessoas têm ao longo da vida, que fez um conjunto de factores precipitantes do comportamento suicida.
É preciso alertar os técnicos que contactam com essa pessoa para a eventualidade de poder haver uma tentativa de suicídio e um suicídio.
Noutros países a maioria das vítimas é do sexo masculino, no caso português 42% das vítimas entrevistadas são mulheres. Como é que interpreta isso?
Esse é um dado que nós não sabemos interpretar completamente. Hans Zollner chamou a atenção para isso, que gostava de perceber porque é que havia tantas mulheres.
Na população é ao contrário, a população é muito mais raparigas [que foram] abusadas do que rapazes. E isso tem que ver provavelmente com a capacidade de denúncia da situação. Temos sempre de perceber por que é que umas pessoas falam e outras não falam. A nossa convicção é que há muita gente que não falou agora. Provavelmente nesses sítios [em que as vítimas falaram sobre o abuso] foi mais fácil às pessoas poderem fazê-lo porque foram se calhar apoiadas.
Não o associa à questão da homossexualidade? Ou seja, o facto de poder haver uma diferença neste campo em Portugal em relação a outros países?
Não, eu rejeito completamente a associação do abuso sexual com a situação da homossexualidade. Temos de fazer essa distinção porque o abuso sexual não tem nada que ver com a orientação sexual.
O abuso sexual é uma patologia da personalidade, em que temos aquilo a que chamamos de personalidade clivada. Ou seja, uma pessoa com grande capacidade de interacção com os outros e inserida na comunidade, sedutora, que tem uma parte escondida da sua personalidade clivada que faz este comportamento abusivo.
É importante fazer essa distinção. Aliás, uma das coisas que mais me impressionou é a muita dificuldade da Igreja em lidar com a sexualidade, em diversos contextos. Por exemplo, a Igreja não defende o preservativo e a pílula quando o preservativo e a pílula são fundamentais para situações em que a gravidez não é possível ou não é desejada.
A Igreja não defende a educação sexual como uma arma fundamental na prevenção do uso sexual e no sentido de promover uma sexualidade saudável. E a Igreja muitas vezes associa comportamentos menos frequentes, como a homossexualidade, ao pecado. Portanto, criou em relação à sexualidade um terreno muito difícil em que só a sexualidade ligada à procriação é defendida pela Igreja.
Como associa esses aspectos que está a enumerar de forma directa à questão do abuso de menores e ao que descrevia como uma perturbação que os abusadores têm para, no fundo, cometerem este tipo de erro?
A Igreja revestiu-se de um poder que torna muito difícil a expressão livre da sexualidade. E albergou no seu seio pessoas que têm comportamentos desviantes, os quais ocultou. Não é só a Igreja que oculta o abuso sexual, mas a Igreja dificultou ainda mais a revelação do abuso sexual porque há crenças espirituais ligadas ao abuso sexual nas instituições religiosas.
Com isto quero dizer que nas instituições religiosas o padre, o frade ou a freira são investidos de um poder ligado a Deus, que lhes dá um extremo poder sobre a criança mais vulnerável e mais sozinha. Evidentemente, na família também há poder. Não há abuso sexual sem poder. Mas o facto de haver um poder divino torna ainda mais difícil a revelação do problema.
Muitos destes abusos foram continuados durante meses, alguns até anos. O que é que isto revela?
Revela duas coisas: uma personalidade muito doentia por parte do abusador, a impossibilidade de assumir a culpa, e revela da vítima a impossibilidade de se defender. Essas situações de abuso continuado mostram um abusador, um predador sexual, que não consegue controlar os seus impulsos. E depois uma vítima completamente indefesa pelo contexto que torna a revelação mais difícil.
É preciso percebermos que quando temos um abusador em qualquer circunstância o acompanhamento espiritual não é suficiente. Esse é um dos erros da Igreja.
Um dos erros da Igreja foi também pensar que o acompanhamento espiritual do abusador [é suficiente]. E nós temos casos em que o padre foi desviado para outra paróquia e foi acompanhado espiritualmente, e é importantíssimo, mas não chega. E temos de dizer, de uma forma muito clara, que os abusadores têm desvios da personalidade de uma enorme gravidade e que têm que ser tratados. Não podemos fugir disso. Não há nenhum abusador sexual que não tenha de ser tratado.
Há realmente garantias de que a recuperação é possível?
Há esperança. Se me perguntar se há garantias de que a depressão possa ser bem tratada, digo-lhe que sim, a mesma coisa com a ansiedade e outras situações. Mas, neste caso, temos que ter esperança que a psicofarmacologia, isto é, os medicamentos e a parte da psicoterapia, possam dar resultados.
Há diferenças entre gerações de sacerdotes na maneira como diferentes gerações de padres olham para este problema?
Em relação ao abuso há uma ligação entre os sacerdotes mais novos e o abuso mais intrusivo, mais violento. E isso é interessante de perceber, por que é que os sacerdotes mais novos têm formas de abuso mais violento e os sacerdotes mais velhos têm menos violentas. Embora seja tudo violento, estamos a falar apenas de graus de violência.
Evidentemente que eu acredito que tem sido feito algum esforço de formação por parte das pessoas da hierarquia da Igreja. E acho que os sacerdotes mais novos têm mais capacidade de perceber o que se passa com eles. Agora é preciso fazer um trabalho diferente.
Mas como é que isso se pode mesmo materializar?
Pode-se materializar chamando pessoas de fora da Igreja, especialistas de sexologia, psicólogos, sociólogos que possam fazer as oficinas de formação e fomentar muito o trabalho de grupo. Se fizermos um método muito expositivo em que há uma pessoa a falar sobre as diversas questões da sexualidade e toda a assistência estiver calada não conseguimos nada.
Quando eu trabalhei em educação sexual, em 2009, tínhamos nas escolas uma técnica muito simples que era pôr uma caixa de perguntas e os adolescentes punham lá as perguntas todas. Algumas eram um bocadinho inconvenientes, mas isso não faz mal nenhum. E depois nós respigávamos essas perguntas de que falaríamos a seguir.
Sugeriu também que se realize um estudo que investigue este fenómeno do abuso de crianças e jovens em toda a sociedade portuguesa. Que proporções é que se podem atingir noutros âmbitos, seja no âmbito desportivo ou da família?
Precisamos estudar isto a nível nacional. É preciso dizer que a Igreja deu o primeiro passo e foi muito importante que o tivesse feito. Agora é preciso que outras estruturas possam dar estes passos.
Nós vamos ter agora reuniões, são as últimas actividades que vamos ter com ministros do actual Governo, em que vamos justamente propor este estudo a nível nacional e mudanças legislativas que possam ser importantes. Em todo o local onde haja adultos a tomar conta de crianças esta questão deve ser pensada. Quero deixar muito claro que a maioria das situações e a maioria das pessoas cuidam muito bem das crianças, não podemos lançar agora um anátema sobre todas as pessoas que trabalham com crianças.
Por exemplo, no desporto é essencial que seja feito. O exercício físico é fundamental para a saúde mental e o desporto escolar deve ser reforçado, os clubes desportivos deviam ser muito mais abertos a jovens que pudessem fazer desporto sem terem que ser competitivos a nível dos campeonatos. Essa abertura é importantíssima. Outras organizações que têm crianças, como os escuteiros, são extremamente importantes para o desenvolvimento infanto-juvenil. Agora, é preciso que as pessoas estejam conscientes de que pode existir esse problema.
Na maior parte das vezes não acontece. É preciso deixar isso bem claro. Mas é mais frequente do que as pessoas pensam e temos de estar alertados.
E a reunião com o Governo já está marcada?
Ainda não está marcada, mas já está pedida pelo Governo, pela ministra da Justiça e pela ministra do Trabalho e da Segurança Social e vai-se realizar. Será provavelmente o último acto que nós faremos como comissão.
Que propostas é que vão exactamente apresentar nessa reunião?
Ainda não discutimos sobre isso, mas vamos falar desta questão de poder haver uma resposta do Serviço Nacional de Saúde. Vamos também falar das necessárias alterações legislativas por causa do limite de prescrição. Acho que o Governo deve ponderar esta questão e, junto dos grupos parlamentares, incentivar uma medida de alteração da lei. Foi uma boa resposta que já existiu nos grupos parlamentares. E depois vamos ver as situações da segurança social, das vítimas que eventualmente possam ter apoio e precisar de apoio devido à sua situação mais frágil que possam ter.
E espera que o Papa Francisco se reúna com as vítimas dos abusos sexuais para dar um exemplo também aos bispos portugueses?
Eu ouvi que “este tema é bom que não vá entrar na Jornada Mundial da Juventude" e "oxalá este tema não vá ter repercussão”. Evidentemente que as Jornadas Mundiais de Juventude não são sobre abusos sexuais, mas é importante não esconder o tema. Acharia muito importante que o Papa Francisco desse um sinal em relação a este problema, recebendo as vítimas. E sabemos que há vítimas que gostariam muito de falar com o Papa.
Contrapondo o total de 512 testemunhos validados pela Comissão e a estimativa de mais de 4800 casos que terão ocorrido, concluímos que, de facto, a maioria das vítimas continua no silêncio, apesar deste trabalho.
Exactamente e por isso é que não se pode deixar morrer este assunto. Uma das coisas que acho fundamental criar a nível do Ministério da Segurança Social ou do Ministério da Saúde é uma linha aberta para estas questões, ou seja, continuarmos a possibilitar o testemunho.
Em todas as áreas?
Em todas as áreas, [ter] a possibilidade de a pessoa que teve uma situação de abuso poder [fazê-lo] anonimamente, o anonimato é muito importante, através de um telefonema em que possa dizer "o que é que eu devo fazer?", "tive esta situação onde é que eu me devo dirigir?".
Ou seja, o canal aberto que a comissão conseguiu durante um ano, com grande apoio da comunicação social, fecha para a comissão, que terminou os seus trabalhos, mas tem que ser rapidamente aberto para uma estrutura do Governo ou para uma nova comissão que possa continuar o nosso trabalho.