Guerra da Ucrânia aumentou entre 62% a 112% os custos da energia para as famílias

Estudo que abrange 87,4% da população mundial faz estimativas sobre a evolução do peso dos combustíveis fósseis e produtos derivados no orçamento das famílias em todo o mundo durante o último ano.

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A União Europeia decretou um embargo ao petróleo russo que entrou em vigor no fim do ano Reuters/Christian Hartmann

A guerra da Rússia contra a Ucrânia desencadeou uma crise energética, que tem impactos directos (combustível e energia) e indirectos (em todos os bens que precisam de petróleo, carvão ou gás para serem produzidos e chegarem ao mercado). Uma equipa internacional de cientistas fez cálculos e concluiu que os custos totais da energia que as famílias têm de adquirir aumentou entre 62,6% e 112,9%, em termos globais.

“Este valor, 62,6% a 112,9%, é o aumento total dos custos da energia”, explicou ao PÚBLICO, por e-mail, Yuli Shan, da Universidade de Birmingham (Reino Unido), um dos autores do artigo publicado online nesta quinta-feira na revista Nature Energy. “Inclui alterações nos custos directos que se sentem na conta da luz ou dos combustíveis, bem como os custos que influenciam as mudanças de preço nos vários bens e serviços que se consomem. Neste caso, as mudanças devem-se à energia que é gasta ao longo das cadeias de abastecimento globais para produzir e fazer chegar ao consumidor estes bens e serviços”, concretizou.

Os cientistas criaram vários modelos para calcular os impactos directos e indirectos desses aumentos de preços dos combustíveis fósseis e produtos derivados em populações com diferentes capacidades de consumo, em 116 países. O estudo abrange 87,4% da população mundial, e dá especial atenção aos países em desenvolvimento (Portugal não foi incluído).

Os cientistas criaram um cenário de base (SCO, relativo aos preços da energia antes da invasão da Ucrânia pela Rússia) e nove cenários para reflectir as diferenças nos preços do carvão, petróleo e gás e produtos derivados desde 24 de Fevereiro de 2022 (início da invasão russa) e até 13 de Setembro de 2022, já depois de serem impostas sanções económicas à Rússia, que incluem o embargo exportação de petróleo, por exemplo, e de esta retaliar cortando no abastecimento de gás natural à Europa.

O cenário SC1 modela a evolução dos preços médios durante este período, o SC9 é o cenário extremo (baseado no momento em que os combustíveis atingiram os preços mais altos) e os restantes reflectem os possíveis efeitos com as subidas de preços mensais.

“Calculamos as alterações no peso dos custos adicionais com a energia que as famílias tiveram de suportar nos seus orçamentos, em comparação com o que se passava antes da guerra”, explicam os cientistas.

Analisando a evolução dos preços, os cientistas sugerem que os custos com a energia, aumentaram então entre 62,6% e 112,9% ao nível global, consoante os cenários.

Isto terá resultado num aumento nas despesas familiares entre 2,7 e 4,8%, levando em conta os custos directos e indirectos dos combustíveis. “Este valor refere-se à parcela do aumento dos custos totais de energia no montante global das despesas das famílias”, explicou Yuli Shan ao PÚBLICO.

“Os custos indirectos da energia aumentaram consideravelmente mais do que os directos. Usando o cenário SC1 como exemplo, os custos indirectos aumentaram 82,3% (o que resulta num aumento de 2,4% do total das despesas domésticas), comparando com um aumento de 56,8% (0,8% dos gatos totais) nos custos directos com a energia”, escrevem os autores.

Àsia Central e África sofrem mais

Os impactos variam muito consoante os países, mas a Ásia Central parece ser a região do mundo que mais sofreu com os aumentos dos custos da energia, tanto os directos como indirectos, seguido do Sul e Sudeste da Ásia. “Por exemplo, os custos directos para as famílias no Laos aumentaram ‘apenas’ 51,1%, mas os custos totais de energia cresceram 100,8%, o que representou 5,8% das suas despesas”, lê-se no artigo.

Quando se consideram apenas os impactos directos (combustíveis, electricidade), alguns países da África subsariana, os aumentos dos custos da energia eram relativamente reduzidos. Mas a percentagem dos custos adicionais da energia na despesa total das famílias aumentava de forma substancial. “No caso do Ruanda, um país de baixos rendimentos na África Oriental, o aumento dos custos totais com a energia (59,5%) é mais baixo do que a média global (73,9%). Mas a percentagem dos custos adicionais da energia na despesa total das famílias subia para 11,1%, três vezes mais elevada do que a média global (3,2%)”, escrevem os cientistas.

Este efeito explica-se porque embora os países mais pobres sejam menos dependentes dos combustíveis fósseis para terem electricidade ou cozinhar, por exemplo, são mais penalizados com o aumento dos preços através dos custos indirectos em toda a cadeia de abastecimento. “Para as famílias da maioria dos países de baixos rendimentos, o aumento nos custos indirectos da energia nos alimentos é ligeiramente mais elevado do que em outros produtos”, exemplificam os cientistas.

Os autores calculam que, em comparação com a situação antes da guerra, entre 78 milhões e 141 milhões de pessoas em todo o mundo podem ser empurradas para a pobreza extrema por causa do aumento dos preços da energia. É uma estimativa mais elevada do que a do Banco Mundial (75 milhões-95 milhões), mas são usadas formas de cálculo diferentes, dizem os investigadores.

“Mostramos como esta crise está a exacerbar a pobreza energética e a pobreza extrema em todo o mundo. Para os países mais pobres (por exemplo, na África subsariana), o custo de vida põe em causa os ganhos conquistados a pulso no acesso à energia e alívio da pobreza. Garantir que a energia, e outros bens, permanecem a um preço acessível, é ainda mais urgente para estes países”, sublinha a equipa. “Proteger famílias vulneráveis devia ser uma prioridade clara”, recomendam.

Os preços elevados estão a transformar os mercados da energia, sublinham os cientistas. “A corrida aos combustíveis fósseis liderada pelas economias avançadas pode ter consequências noutras. Por exemplo, se a Europa dominar o abastecimento mundial de gás natural liquefeito (LNG), alguns consumidores, sobretudo na região da Ásia-Pacífico, poderão regressar rapidamente -se aos recursos disponíveis de combustíveis fósseis”, alertam.

Há também o risco de inverter o caminho de investimento nas energias renováveis nas nações mais vulneráveis, avisa a equipa na Nature Energy. “Os custos elevados com a energia podem reduzir os investimentos dos países de menos recursos na infra-estrutura de produção de energias renováveis, devido às limitações orçamentais”, dizem.