Na óptica de João Joanaz de Melo, membro fundador do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), a Galp está a pecar naquele que é o capítulo da “responsabilidade social”. A petrolífera, que obteve lucros recordes em 2022, anunciou esta segunda-feira que vai continuar a fazer “um investimento muito significativo” no negócio de exploração de petróleo e gás até ao final desta década. No contexto de crise climática em que estamos, “as empresas não podem pensar só no seu umbigo”, entende João Joanaz de Melo.
“É claro que têm de pensar em fazer lucro. Mas aqui está em causa também a sua responsabilidade social, que hoje em dia inclui responsabilidade ambiental”, assevera.
A Galp terminou o ano passado com lucros históricos, na ordem dos 881 milhões de euros (que bateram largamente os 457 milhões de 2021). Esta segunda-feira, numa conferência com analistas, o presidente executivo da empresa, Filipe Silva, garantiu que a empresa vai, pelo menos até ao final da década, continuar a investir de forma expressiva no sector dos combustíveis fósseis.
Em 2022, a Galp produziu à volta de 127 mil barris de petróleo por dia. Este ano e em 2024, este número deverá cair para os 110 mil (por causa da venda das suas operações petrolíferas em Angola a uma empresa), mas em meados de 2025 a Galp deverá começar a explorar um “gigantesco” campo de petróleo de “baixa intensidade carbónica” no Brasil, o que, em tese, contribuirá para aumentar notoriamente a sua produção. E há em cima da mesa outras possibilidades de negócio que estão a entusiasmar a empresa e os seus accionistas.
Sobre a exploração no Brasil, João Joanaz de Melo diz ser “fantasioso” falar-se em baixa intensidade carbónica. “Se é de petróleo e gás que estamos a falar, não há cá baixa intensidade”, atira.
Sobre, por outro lado, os lucros históricos da empresa — que têm muito que ver com a guerra na Ucrânia e os custos mais elevados do petróleo, aponta —, este especialista em temas como políticas de sustentabilidade e eficiência energética lamenta que a Galp não tenha aproveitado o actual momento de fulgor financeiro para “mudar a agulha”. “A tendência a nível internacional é a transição para as energias renováveis.”
Sector que “não tem futuro”, mas dá muito lucro
O sector dos combustíveis fósseis é um sector que “não tem futuro”, concorda Carolina Silva, da associação ambientalista Zero. Esta especialista, que acompanha as áreas que vão da energia e mobilidade aos oceanos, diz que a vontade da Galp de continuar a investir significativamente na exploração de petróleo e gás não é consistente com as metas climáticas do país — e da própria empresa — relativamente à neutralidade carbónica.
A petrolífera diz querer atingir a neutralidade carbónica até 2050 (já Portugal quer antecipar a sua meta de 2050 para 2045). Por outro lado, a Galp já anunciou recentemente acordos que deverão mantê-la ligada à compra de gás natural liquefeito até pelo menos 2047.
Carolina Silva considera que as suas metas ambientais não são credíveis, lembrando que não basta calcular as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) decorrentes da produção de petróleo. Há que ter em conta o impacto ambiental de “toda a cadeia de valor” da empresa, salienta.
“Estamos numa década em que estes grandes investimentos em combustíveis fósseis já deveriam ter deixado de existir. Esta década é crítica em termos de acção climática e é verdadeiramente preocupante que a Galp esteja a fazer isto, porque há um limite de subida da temperatura até ao final do século que estamos absolutamente proibidos de ultrapassar”, continua. Este limite corresponde à conhecida meta de manter a subida global da temperatura abaixo dos 1,5 graus Celsius em relação aos valores pré-industriais.
Entre o retorno financeiro e a necessidade de descarbonizar
A Galp afirma no seu site que, até 2025, cerca de 50% dos seus investimentos “terão como objectivo a captura de oportunidades decorrentes da transição energética”. Filipe Silva frisou esta segunda-feira, no entanto, que “qualquer novo investimento de baixo carbono” feito pela empresa “é decidido com um foco muito estrito no retorno que gera”. Muitas vezes, as escolhas são feitas “de forma integrada” com a necessidade de reduzir a pegada ecológica da petrolífera, reforçou.
João Joanaz de Melo refere entender o pensamento estratégico — se o negócio do petróleo está a ser rentável e há muita procura, é óbvio que alimentar esse mercado será financeiramente vantajoso, diz —, mas lamenta que a Galp esteja a pensar sobretudo num horizonte temporal que é bastante curto. “Não tenho nada contra as empresas, mas acho que elas deviam ser mais responsáveis. E mais responsabilizadas.”
Ouvida pelo PÚBLICO, a Galp argumenta que, “uma vez que o mundo continuará a necessitar de petróleo” durante os próximos anos, “mesmo nos cenários de uma transição mais acelerada para um quadro global de neutralidade carbónica”, a empresa acredita ser “imprescindível, inclusivamente em termos sociais”, continuar a investir nesta fonte energética.
A petrolífera diz que, para limitar as suas emissões, tenta investir sobretudo em projectos de petróleo e gás com “uma intensidade carbónica de cerca de metade da média da indústria”.
Sobre a atenção dada às energias limpas, a Galp diz ter neste momento “em execução um plano de investimentos” para destinar, nos próximos três anos, 3,5 mil milhões de euros “ao desenvolvimento de projectos de produção de novas energias de baixo carbono e renováveis, incluindo o hidrogénio verde, biocombustíveis avançados, combustíveis sintéticos ou combustíveis sustentáveis para aviação e transporte marítimo”.
A Galp não foi a única petrolífera que teve um 2022 muito bom do ponto de vista financeiro. Foram várias as empresas que terminaram o ano passado com lucros recordes, entre elas a BP — fez tanto dinheiro que, por causa disso, anunciou que vai retroceder em termos de metas climáticas.
A multinacional britânica conta chegar a 2030 com uma produção de cerca de dois milhões de barris de petróleo por dia. Se conseguir cumprir, teremos daqui a sete anos uma BP a produzir 25% menos do que produzia em 2019.
Até há pouco tempo (antes da apresentação do seu balanço financeiro de 2022), a BP tencionava produzir 40% menos, não 25%. A necessidade de “responder à procura por um fornecimento seguro de petróleo e gás” justifica o retrocesso em termos de metas climáticas, diz a petrolífera.
Notícia actualizada a 15 de Fevereiro de 2023, às 12h07, para acrescentar a resposta da Galp às questões endereçadas pelo PÚBLICO.