Mutilação genital feminina é crime, mas e a episiotomia?

O corte cirúrgico feito no períneo durante o parto vaginal, desaconselhado pela OMS desde 2018, ainda não é entendido como uma forma de mutilação genital feminina. Até quando?

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Manuel Roberto

A 6 de Fevereiro assinala-se o Dia da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina (MGF). Nesse sentido, a Direcção Geral de Saúde (DGS), divulgou, através do seu site, uma actualização dos registos de mutilação genital feminina relativa ao ano de 2022, na qual é referido que, entre Janeiro e Dezembro de 2022, foram efectuados 190 registos de MGF na plataforma Registo de Saúde Electrónico, representando este número um aumento de 27,4% face ao período homólogo anterior.

Na mencionada actualização, é ainda salientado que, desde o ano de 2014, foram registados um total de 853 casos de MGF em Portugal. Vemos que, só no ano de 2022, foram registados cerca de 22,3% da totalidade dos casos sinalizados entre 2014 e 2022.

Segundo a noção adoptada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a mutilação genital feminina compreende todo e qualquer procedimento do qual resulte a recessão total ou parcial dos órgãos sexuais femininos externos, bem como outras lesões levadas a cabo nos órgãos sexuais femininos por motivos não médicos. Em Portugal, foi através da Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, que se passou a punir de forma autónoma este crime, através do aditamento do artigo 144.º-A ao Código Penal.

A realidade é que são escassos os casos de condenação por este crime nos tribunais portugueses. Dado falarmos de práticas culturalmente motivadas, muitas vezes baseadas em crenças e tradições religiosas, e que são mais comuns nas sociedades menos desenvolvidas, com os fluxos migratórios para Ocidente a que se tem vindo a assistir, a MGF tem-se difundido também nas sociedades ocidentais. Nesse sentido, e frisando o facto de estarmos perante um crime culturalmente motivado, grande parte dos casos que chega aos nossos tribunais acabam por ser arquivados.

No entanto, a MGF não se esgota nessas práticas alicerçadas nas crenças e tradições. Considero que se deveria encarar esta gravíssima violação dos direitos mais elementares inerentes à qualidade da pessoa humana, sob uma perspectiva actualista, pondo-se os olhos em determinadas práticas que estão a ser adoptadas nos hospitais portugueses, e que se inserem (claramente) no tipo incriminador presente no artigo 144.º-A do Código Penal. Refiro-me à episiotomia.

Tal como foi tão bem explicado por Mia Negrão, recentemente, no seu artigo intitulado A Episiotomia como Forma de Mutilação Genital Feminina À Luz do Artigo 144.º-A do Código Penal, publicado na Revista Portuguesa de Direito da Saúde – Lex Medicinae, a episiotomia, que consiste num corte cirúrgico feito no períneo durante o parto vaginal, é uma moderna forma de mutilação genital feminina, que viola o direito à autodeterminação, à integridade física e à saúde das mulheres, subsumível no artigo 144.º-A.

A episiotomia é uma prática hospitalar não recomendada pela OMS desde 2018, por se ter concluído não existirem quaisquer evidências de trazer benefícios no momento do parto, sendo elevadíssimas as consequências negativas que dela advêm para a saúde da mulher.

Falando de números, não serão precisos grandes desenvolvimentos para que nos seja possível refutar a afirmação, por parte da DGS, de que no espaço de nove anos, entre 2014 e 2022, houve 853 casos de Mutilação Genital Feminina em Portugal.

Vejamos. De acordo com um estudo realizado online, no âmbito do projecto Imagine Euro, no qual colaborou o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, num universo de 1685 mulheres portuguesas que foram mães durante o primeiro ano de pandemia, 40,7%, ou seja, cerca de 685 mulheres, disseram ter sido sujeitas a episiotomia durante o parto vaginal espontâneo. Isto, quando a média global dos 11 países sobre os quais o estudo incidiu, foi de 20,1%.

Ora, se apenas num ano, cerca de 685 mulheres foram sujeitas a episiotomia em Portugal, fazer o cálculo para um período de nove anos parece-me prescindível, sendo as conclusões que daqui retiro mais que óbvias.

O dia da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina também toca a muitas mulheres portuguesas, a quem num dos momentos mais importantes das suas vidas foi imposto um corte irreversível, sem que, em qualquer momento, o poder sobre tomar autonomamente decisões sobre o seu próprio corpo fosse “tido nem achado”. E não, não foram só 853.

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