No contra-relógio da adaptação climática, a água é “um dos sectores mais urgentes”

Um ano depois da Lei de Bases do Clima, na qual Portugal se compromete com as metas climáticas, o país tem feito caminho na redução de emissões, mas ainda há muito a fazer em matéria de adaptação.

Foto
O especialista em alterações climáticas Filipe Duarte Santos Nuno Ferreira Santos

Um ano depois da entrada em vigor da Lei de Bases do Clima, Portugal tem feito o seu caminho na redução de emissões de gases com efeito de estufa, mas tem dado pouca atenção à adaptação do território a um clima cada vez mais quente e seco. O alerta é deixado por Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, que destaca que um dos sectores mais urgentes é o sector da água.

A Lei de Bases do Clima, que foi publicada no final de 2021 e entrou em vigor em 1 de Fevereiro de 2022, inclui medidas que deveriam ter sido executadas pelo Governo e a Assembleia da República no prazo de um ano após a entrada em vigor da lei, ou seja, até 1 de Fevereiro de 2023.

Um dos pilares da lei é o Conselho para a Acção Climática (CAC), cuja composição e regulamento é de iniciativa parlamentar, e para o qual existem três propostas de regulamentação, do PS, PSD e PAN, que só agora devem começar a ser discutidas na Assembleia da República. Dependerá desse CAC emitir pareceres e prestar apoio para a concretização de outros projectos importantes, como o futuro Portal da Acção Climática, onde estará reunida toda a informação sobre o cumprimento das metas de redução de emissões de gases com efeito de estufa (GEE) e cumprimento dos compromissos internacionais.

A Lei de Bases do Clima consagrou na lei um compromisso com a redução das emissões, mas depende também de outros planos e estratégias para entrar em acção. Que balanço faz do seu impacto? De que é que nos serviu ter reconhecido a emergência climática na lei?
Bom, realmente não houve um grande impacto. Há políticas de energia e clima que foram decididas antes da publicação desta Lei de Bases do Clima e que continuam o seu percurso. É importante salientar que a Lei de Bases do Clima não regulamenta apenas a mitigação, ou seja, a redução das emissões, mas também a adaptação às alterações climáticas, que é algo muito importante.

Os impactos estão bem visíveis e foram gravosos para o país em termos de eventos extremos, de situação de seca e depois de inundações na região de Lisboa e noutras regiões, especialmente no Centro e no Norte. Aquilo que está determinado na Lei de Bases do Clima é que haveria uma série de iniciativas que estariam concluídas a 1 de Fevereiro de 2023, mas isso de facto não se concretizou, o que é bastante surpreendente.

Um dos pilares da lei é mais transparência e mais vias de escrutínio, em particular através do Portal da Acção Climática e do Conselho da Acção Climática. Como vê o facto de estes elementos ainda não terem avançado? O que justifica esta demora?
É difícil de entender aquilo que se passa, causa alguma perplexidade. Um dos pilares da lei é o Conselho para a Acção Climática, cuja composição e cujo regulamento é de iniciativa parlamentar, mas que tanto quanto se saiba ainda não existe. Neste momento existem apenas duas propostas de regulamentação, uma do PAN e uma do PSD [a 7 de Fevereiro, o PS também apresentou um projecto de lei].

Este Conselho tem um papel consultivo relevante de acordo com a Lei de Bases do Clima. É imprescindível como garante de transparência e do cumprimento da lei na sua integridade. Por exemplo, dependem da avaliação que esse Conselho faz e das suas intervenções elementos muito importantes, como seja o Portal de Acção Climática, os orçamentos de carbono e outras coisas que dependem da constituição deste Conselho.

Outro dos pilares da lei é promover o envolvimento dos cidadãos na acção climática e no feedback sobre o que está a ser feito. Neste momento, enquanto não há o portal para reunir os mecanismos de participação, quais são as formas que um cidadão comum tem para questionar o Governo, por exemplo, sobre a aplicação da Lei do Clima?
A prática na União Europeia e noutras regiões do mundo é que as políticas públicas devem ser baseadas na ciência, e os cientistas têm aqui um papel importante. Depois, no que respeita à implementação dessas políticas e todo o processo que leva à execução, é necessário que tenham a compreensão e a participação dos cidadãos, das organizações não governamentais, dos sindicatos, das organizações profissionais, das organizações e das confederações de indústria e da agricultura.

É essa a experiência que temos no Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, que tem membros designados por diferentes organizações. É importante reconhecer que tenham interesses diferentes - não diria divergentes, mas são diferentes -, mas tem sido possível chegarmos a consenso, e esse consenso é que é realmente importante na sociedade para enfrentar essas problemáticas, que têm a sua complexidade. Para se resolverem esses problemas é necessário que os cidadãos sejam conhecedores. O conhecimento é diferente da informação, é algo muito mais importante, mas também depende da informação para saberem como devem actuar e como devem participar neste processo.

Foto
Parque de energia eólica na Serra Serrada, em Trás-os-Montes Nelson Garrido

No discurso político sobre a emergência climática, a questão da mitigação costuma estar mais presente do que a adaptação, que envolve, por exemplo, a conservação do território e preservação da natureza. Como é que vê este equilíbrio? Em termos de políticas mais concretas, as medidas de adaptação têm sido mais esquecidas ou descuidadas em relação à mitigação?
Sim, realmente noto isso. Portugal tem tido um percurso muito meritório no que respeita à mitigação. No ano de 2021, Portugal ficou em sétimo lugar no conjunto dos 27 países da União Europeia (UE) em termos de geração de energia eléctrica a partir de fontes renováveis. Em primeiro lugar está a Suécia, 60,62% da sua energia eléctrica vem de fontes renováveis, e Portugal tem 33,93%, é o país do Sul da Europa que está mais à frente. Isto é muito positivo, há que continuar o esforço, mas contribui para uma descarbonização que tem que ser global.

É muito bom que a UE consiga reduzir as suas emissões, e reduziram-se em 32% desde 1990 até 2020, mas à escala global as emissões da UE correspondiam a 17% em 1990 e em 2021 correspondem só a 7,5%. Quem se porta bem fica com uma quota mais pequena e, portanto, não resolve o problema de todos os outros que não se portam de forma semelhante. As emissões continuam a subir.

O país que neste momento tem maior volume de emissões de gases com efeito de estufa é a China, seguida dos Estados Unidos. Depois era a UE a 27, agora é a Índia. Estamos a passar ao quarto lugar, e se continuarmos a portar-nos muito bem passamos a quinto, sexto lugar… mas as emissões continuam a subir.
Estamos perante um problema global. Não basta termos uma atitude muito positiva relativamente a esta transição energética. É preciso que o mundo todo tenha.

A consequência que se tira daqui é que, enquanto as emissões continuarem a subir, os impactos vão continuar a ser muito significativos. No caso de Portugal e de Espanha, países vulneráveis, na região do Mediterrâneo, com todas as problemáticas associadas à escassez de água, esses países vão continuar a sentir os efeitos negativos das alterações climáticas. É muito importante darmos atenção à questão de nos adaptarmos a um clima, no caso de Portugal, mais quente e mais seco.

Somos um país muito rico em biodiversidade e fazemos o possível para que o impacto das alterações climáticas seja o menos gravoso possível, mas há sectores em que a situação é difícil, como seja dos incêndios florestais e rurais. A área média que arde nos últimos dez anos em Portugal é da ordem de 1%, o valor mais alto dos 27 países da União Europeia. Não temos esse problema resolvido.

Com as alterações climáticas, o clima vai ser mais quente e mais seco, com uma variabilidade enorme entre períodos em que é seco e depois temos grande quantidade de precipitação, que faz com que a vegetação cresça muito. Temos outros sectores, como seja a água, em que quando temos uma seca muitas povoações são abastecidas com camiões cisterna. Neste momento, apesar da chuva, há regiões do país em que as barragens continuam muito baixas. Temos de ter mais atenção à adaptação. É uma coisa que não brilha no estrangeiro, mas é muito importante para nos defendermos dessa situação.

Foto
Exploração de medronheiros com rega gota-a-gota, em Oleiros, na Beira Baixa Sergio Azenha

A Lei de Bases do Clima entrou em vigor mesmo antes da guerra na Ucrânia, que acabou por ocupar as atenções. Quais são as prioridades que gostaria de ver na agenda assim que volte a haver “largura de banda” disponível para voltarmos a dar a devida atenção à crise climática?
Todas as guerras são dramáticas, esperemos que seja possível alguma forma de negociação para que esta guerra termine. A guerra veio mostrar a vulnerabilidade não só da Europa, mas sobretudo da Europa, em relação à grande dependência dos combustíveis fósseis. Uma das consequências deste conflito foi acelerar a transição energética.

Em Portugal também há muito a fazer, temos uma potencialidade de geração de energia renovável muito boa em termos solares e também eólicos. Há agora um concurso para licenciamento de eólicas offshore, que é uma iniciativa muito meritória, e também fotovoltaica, que tem uma expressão ainda mais pequena, mas que pode crescer. São boas notícias para Portugal.

Agora, no que respeita à adaptação, um dos sectores mais urgentes é o da água. Temos perdas muito grandes de água na distribuição urbana. Não se faz uma medição completa de toda a água que se utiliza na agricultura. Como é que vamos optimizar o consumo da água e diminuir o desperdício se não medimos? Isso ainda não é feito de uma forma sistemática, sobretudo nas explorações agrícolas em que se utiliza muito as águas subterrâneas.

Com as precipitações muito intensas que tivemos e que vamos ter também no futuro, também podemos fazer mais no sentido de armazenar mais água. Há maneiras de fazer isso sem fazer grandes infra-estruturas de barragens, há formas de armazenar essa água e evitar que toda essa água vá para o oceano, porque depois dessas precipitações muito intensas pode vir uma seca.

A agricultura é um sector fundamental na nossa economia e não vejo grande movimento. Quer dizer, vejo grandes tentativas de coisas de grandes dimensões que me parecem irrealistas, mas coisas pragmáticas, que se possam fazer, que sejam realmente úteis e que tenham uma escala que não envolva custos exorbitantes... isso não vejo. Sobretudo, depende de uma colaboração entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Ambiente. E estes ministérios têm dificuldades... não é só em Portugal, em muitos outros países é a mesma coisa.

Mesmo a nível europeu, nas negociações sobre a reforma da Política Agrícola Comum (PAC), houve grandes divergências entre a comissão do Ambiente e a comissão da Agricultura.
As pessoas têm opiniões diferentes. É natural que haja diversidade de opiniões, mas isso não é razão para que não dialoguem, para que não se sentem à mesa e não tenham um debate. Desse debate muitas vezes saem entendimentos, pontos de vista que são compatíveis, e pode-se avançar.

Portanto, [saliento] a água e adaptar a agricultura a este clima mais seco e mais quente. As zonas costeiras também são uma problemática que nos vai acompanhar, eu diria, durante séculos, porque o nível médio global do mar vai continuar a subir. Temos que fazer alguma coisa contra esse risco, que já se começa a sentir e que se irá agravar à medida que o tempo passa.

E adaptar também as nossas cidades...
As cidades, evidentemente, são cada vez importantes porque é aí que já reside mais de metade da população à escala global, onde se consome mais energia e onde há mais emissões, porque ainda dependemos muito dos combustíveis fósseis. E depois a questão dos sumidouros de carbono, ou seja, das florestas e dos incêndios florestais, e da conservação da natureza, que é crucial.