Dois dias, 7000 pinheiros. Sylvie continua a tentar resgatar o Pinhal de Leiria
Sylvie Gaspar voltou este fim-de-semana ao sítio onde em 2020 plantou 15 mil árvores, para ajudar o pinhal a recuperar do fogo de 2017. Luso-descendente mobilizou perto de 230 voluntários.
José Santos lembra-se bem dos “bailaricos” e piqueniques no Pinhal de Leiria que marcaram a sua juventude. Para este homem reformado de 66 anos, natural da localidade leiriense de Santa Eufémia, a floresta e a praia da Vieira, que dela não dista mais do que 15 minutos de carro, eram, na adolescência, o principal significado de Verão.
Em 2017, José conseguiu ver muito bem, a partir de casa, o “clarão” do fogo que dizimou grande parte do pinhal e descaracterizou a zona. Este sábado, conjuntamente com a filha, as netas e demais familiares, decidiu arregaçar as mangas, sacar da enxada e plantar umas quantas árvores num dos sectores gravemente afectados pelo incêndio.
Este fim-de-semana, até ao final da manhã de domingo, houve uma acção de voluntariado para reabilitar uma pequena parcela do Pinhal de Leiria. Foi organizada por Sylvie Gaspar, mulher de 48 anos que morou a vida toda em França, é filha de pais portugueses e está há mais ou menos cinco anos a tentar ajudar a floresta — ou o “pulmão” da região, como gosta de descrever um espaço ao qual diz ter uma ligação “umbilical”.
Como muitos filhos de emigrantes, Sylvie visita Portugal regularmente. Os pais são de Leiria, que para a francesa foi o palco de muitas férias de Verão. Sabia-lhe bem, diz ao PÚBLICO, respirar um ar mais puro e natural do que o dos arredores de Paris. “Era aquela sensação de: ‘Sinto-me tão bem aqui. Temos o mar, temos a floresta... O que é que queremos mais?’ Este é o nosso cantinho do paraíso.”
Sylvie trabalha em Paris, na sede da TotalEnergies, empresa que opera no sector dos combustíveis fósseis. Em 2018, um ano depois do fogo que consumiu a floresta, fundou uma associação sem fins lucrativos para concorrer a um concurso criado pela petrolífera para apoiar projectos de responsabilidade social em diversas áreas, desde a educação ao ambiente. O nome da associação mistura as suas duas línguas principais: Sauvons le Pinhal Real (Salvar o Pinhal Real).
A candidatura foi aprovada e a luso-descendente arrecadou cerca de 6000 euros. Através de uma angariação de fundos, conseguiria ainda mais 2000 euros em donativos. O somatório foi importante para poder limpar o talhão do Pinhal de Leiria que lhe foi atribuído pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) — o talhão 67, um dos mais de 300 da floresta — e comprar cerca de 15 mil pinheiros-bravos.
Estes foram plantados em 2020, numa acção comunitária que decorreu ao longo de três dias e, segundo Sylvie, envolveu entre 250 e 300 voluntários.
Retirar os pinheiros secos e plantar novos
Este fim-de-semana, a francesa voltou ao talhão 67 para, principalmente, fazer a retancha, isto é, retirar as árvores mortas, que não vingaram, e no seu lugar plantar novas.
“Pela nossa estimativa, secaram entre 30 e 40% dos primeiros pinheiros. O que é muito bom, porque os solos são muito pobres nesta zona, perto do mar, e além disso o último Verão foi muito seco”, contou ao PÚBLICO este sábado, após várias horas de trabalho e com o sol já a dar início à sua trajectória descendente. “A seca foi tão severa que chegámos a recear percentagens maiores”, acrescentou.
A TotalEnergies não apoiou financeiramente esta segunda actividade da Sauvons le Pinhal Real. Foi preciso plantar 7000 pinheiros-bravos e os custos para os adquirir rondaram os 2000 euros, que Sylvie amealhou recebendo mais donativos de pessoas interessadas em ajudar. A francesa conseguiu também mobilizar perto de 230 voluntários, entre eles muitos familiares, diversos amigos e conhecidos, alunos de escolas locais e outras pessoas da região.
O PÚBLICO falou com participantes como Mariana Elói, estudante de 17 anos que passou a tarde de sábado a plantar pinheiros com amigas da escola e pessoas da família. A jovem gostava muito de passar pela floresta e “sentir aquele cheiro de pinhal” quando ia para a praia. “Era uma sensação de paz”, comenta, referindo que o incêndio de 2017 continua a ser uma espécie de fantasma para si.
O fogo foi tão grande que destruiu uma parte extremamente significativa da floresta — dos seus 11.021 hectares, arderam 9476 (86%). Ter noção disso foi “assustador”, repara Mariana. “Foi muito triste. A floresta era uma grande parte da Marinha Grande [cidade em Leiria].”
Apoios de petrolíferas: entre o greenwashing e o contexto
Sylvie ainda trabalha na TotalEnergies e foi em grande parte graças a fundos da empresa que conseguiu financiar a primeira acção (não esta segunda, que, voltamos a frisar, já não contou com o envolvimento directo da petrolífera). Isso deve deixar-nos de pé atrás, tendo em conta tudo o que sabemos sobre greenwashing?
“Sabemos que, sempre que se associam a actividades de cariz ambiental, as empresas mais poluentes tentam usá-las como um instrumento de marketing”, diz Pedro Nunes, da associação ambientalista Zero. Mas se neste caso estamos a falar de um projecto de responsabilidade social que conseguiu fundos de uma petrolífera para reabilitar uma parte do Pinhal de Leiria, a análise a fazer pode ser algo diferente, considera este especialista em política pública.
Uma coisa, argumenta, é uma empresa poluente investir num projecto de plantação de árvores para, a partir dele, adquirir créditos de carbono e “compensar” as suas emissões de dióxido de carbono (CO2). Outra coisa diferente é essa empresa financiar uma iniciativa sustentável, mas não a usar para “entrar no jogo contabilístico” do mercado de carbono e para “apregoar que a sua actividade é ‘emissões zero’”.
As compensações são muitas vezes “falaciosas”, argumenta Pedro Nunes, apontando que, no caso de projectos de plantação de árvores, a floresta plantada hoje demorará décadas a capturar o CO2 que está a ser emitido agora mesmo. “Mas se não entramos nessas questões mais duvidosas, não tenho reservas em relação ao apoio corporativo”, reforça, dizendo que a análise tem de ser feita “caso a caso” — e acrescentando que, seja como for, Sylvie já não obteve fundos da petrolífera neste segundo momento. Foi por sua própria vontade e iniciativa que se mexeu, para conseguir donativos e dar continuidade ao trabalho iniciado há alguns anos.
“Vamos precisar de toda a gente para combater as alterações climáticas. Se mantivermos uma posição de ‘nós contra eles’, estamos condenados ao fracasso”, opina, por seu turno, Miguel Jerónimo, do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA).
O membro desta associação ambientalista diz isto enquanto fala dos seus projectos Renature, pelos quais é responsável e que visam recuperar florestas afectadas por incêndios graves. Existe um Renature Leiria, que pretende, com uma equipa especializada, plantar 1,3 milhões de árvores no Pinhal de Leiria até 2026 — já terão sido plantadas 362 mil, diz Miguel Jerónimo — e há também um Renature Monchique, para reabilitar a serra de Monchique, devastada pelo fogo de 2018.
Este último projecto é financiado pela Ryanair. Ora, o sector da aviação tem uma pegada carbónica relevante.
“Acho que há aqui uma questão importante a ter em conta: se este financiamento não existisse, o que é que estaria a acontecer naquele terreno? Infelizmente, a resposta é que não estaria a acontecer basicamente nada”, aponta Miguel Jerónimo.
“Sabemos que a questão do financiamento da Ryanair pode ser polémica, mas temos de ser pragmáticos para combater as alterações climáticas”, insiste. “O GEOTA tem posições que não condizem com os interesses da Ryanair — somos radicalmente contra o aeroporto do Montijo, por exemplo —, mas temos de saber trabalhar onde há pontos comuns.”
Sylvie diz que, quando no início de 2020 esteve no talhão 67 do Pinhal de Leiria para fazer a primeira acção, a comunidade local não queria saber da sua profissão. Só queria ter a sua floresta de volta, diz.
A francesa garante que a TotalEnergies não financiou a acção de 2020 para tentar obter créditos de carbono — até porque, observa, a escala relativamente pequena da iniciativa de voluntariado não teria permitido à petrolífera compensar mais do que uma porção muito reduzida das suas emissões. “É uma gota no oceano”, concorda Pedro Nunes.
“Quero que os meus filhos tenham floresta”
Os voluntários que passaram este fim-de-semana no talhão 67 do Pinhal de Leiria não pensaram muito em petrolíferas ou créditos de carbono. Aproveitaram sobretudo o sol de sábado, o dia que mobilizou mais pessoas, para contribuir modestamente para a recuperação da floresta.
Paula Cardoso, professora de Geografia (do 7.º ano ao 12.º) no Agrupamento de Escolas Marinha Grande Nascente, passou a tarde desse dia a plantar pinheiros com alunas suas e também com o seu filho mais novo, de dez anos. Já fez voluntariado fora de Portugal e associa-se a iniciativas deste tipo sempre que pode.
Sobre o Pinhal de Leiria, também usa a palavra incontornável — “triste” — para falar do incêndio. “Ter estado cá antes e depois do fogo... Só quem é de cá é que conhece a sensação.”
Sandra Domingos, que é amiga de Sylvie — também trabalha na TotalEnergies e passou uma temporada em França, onde as duas se tornaram próximas —, também esteve na acção deste fim-de-semana com os filhos, que se dedicaram sobretudo à remoção manual da acácia, uma espécie invasora.
Sandra diz ser “inspirador” aquilo que Sylvie está a fazer. “Motiva-nos sempre ver alguém que não vive cá e que, no entanto, consegue fazer este tipo de acção a título individual. Pensamos: ‘Bolas, se ela está lá fora e consegue, então nós conseguimos também’”, refere, revelando que também ela está interessada em falar com o ICNF para ver se também consegue “apadrinhar” um talhão do pinhal e fazer acções de voluntariado para replantar a floresta. “Tenho dois filhos e quero que eles tenham futuro, quero que tenham floresta.”