Diário de Coimbra usa “cigano” como sinónimo de “vagabundo” nas palavras cruzadas

Passatempo publicado na edição de terça-feira, dia 7, já suscitou duas queixas na Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial

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As palavras cruzadas com a correspondência de palavras entre "cigano" e "vagabundo" DR

“Vagabundo (fig.)”. Eis a pista dada nas palavras cruzadas da edição de terça-feira, dia 7 de Fevereiro, do Diário de Coimbra. Solução: “cigano”. Já há duas queixas na Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), que funciona junto do Alto Comissariado para as Migrações.

O alerta foi lançado por Vera Silva, activista e doutoranda integrada no CRIA - Centro em Rede de Investigação em Antropologia. "Hoje no Diário de Coimbra racismo e ciganofobia!", escreveu no Facebook. "Ser cigano não é ser vagabundo! Dignidade e respeito para todas as pessoas e comunidades ciganas!"

Ao tomar conhecimento do caso, a coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, Maria José Casa-Nova, apresentou queixa em nome daquela entidade na CICDR​. Em seu entender, fazer corresponder as palavras "vagabundo" e "cigano" reforça “aquilo que continua a ser o imaginário popular relativamente às pessoas ciganas, veiculando (e perpetuando) o estereótipo negativo, denegrindo a sua imagem”.

O vice-presidente da associação cigana Letras Nómadas, Bruno Gonçalves, também avançou com uma queixa, em nome da associação. Está convencido de que a CICDR a remeterá para a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Não tem, todavia, grandes expectativas em relação a esta última. “Com certeza irá arquivar. Em todas as queixas que fizemos nunca vê o teor racista.”

“Não tenho muito para dizer”, comenta o director adjunto executivo do jornal João Luís Campos, numa curta chamada telefónica. “É sentido figurativo. Um dos sinónimos de vagabundo é nómada; nómada é cigano. Não vejo lógica na crítica. Em momento algum há aqui um juízo pejorativo. Chamar nómada a um cigano é pejorativo? Em Coimbra há um Parque Nómada e nunca ouvi protestar por isso.”

O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora traduz vagabundo por “aquele que vagabundeia, errante; que não trabalha, ocioso, vadio”. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, por sua vez, define-o como aquele “que leva vida errante; que anda de terra em terra, de local em local, sem domicílio ou paragem certa”, sinónimo de nómada, vagamundo. Também aquele “que vagueia pelas ruas, sem domicílio certo, sem ocupação e geralmente sem vontade de trabalhar”, sinónimo de vadio, vagamundo. Ou aquele “que revela falta de constância, que muda constantemente de assunto”, como inconstante, volúvel, vagamundo.

"O conteúdo dos livros questiona-se"

“Não interessa se a palavra é usada em sentido figurado ou literal”, torna Maria José Casa-Nova. “Aliás, usar uma palavra em sentido figurado significa dar-lhe um significado oculto, por norma encontrado no imaginário cultural. Vagabundo é sempre usado em sentido pejorativo.”

O uso de nómada como sinónimo de vagabundo não lhe parece correcto. "O que dizer dos nómadas digitais?" Constar de alguns dicionários não se lhe afigura justificação. “Os dicionários são livros. E o conteúdo dos livros questiona-se.” Tão-pouco lhe parece aceitável o uso de nómada como sinónimo de cigano. “Nómada não é sinónimo de cigano.” Actualmente, pouquíssimos ciganos são nómadas e muitos dos que o são não desejam sê-lo.

Com efeito, a palavra “cigano” mantém significados depreciativos em diversos dicionários. “Pessoa que pertence à etnia cigana; ao povo nómada, provavelmente emigrado da Índia. Deprec. Pessoa que usa de astúcia, impostura ou de má-fé para enganar os outros, sobretudo em negócios”, lê-se no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (2001). “O que pertence aos ciganos; [pej.] aquele que tenta enganar nos negócios, trapaceiro; [pej.] indivíduo boémio”, lê-se no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (2009).

Questionada sobre o que a levou a denunciar o caso, Vera Silva responde: “Foi a indignação e a vontade de partilhar publicamente esta forma explícita de racismo veiculada por um jornal numas simples palavras cruzadas. Infelizmente, isto não é um caso isolado. São bastante comuns estes significados pejorativos associados à palavra cigano nos usos da linguagem popular.” Não considera que este seja um assunto de somenos. “Devemos dar visibilidade, desconstruir e erradicar qualquer forma de racismo e discriminação porque os seus efeitos são múltiplos e espelham-se nos quotidianos das pessoas e comunidades subalternizadas e ostracizadas como o são as comunidades ciganas.”

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