Uma carta ao futuro da Ucrânia

Viajar por estes dias a Kiev é estar numa cidade em que falta luz elétrica várias horas por dia até para as tarefas básicas, numa luta permanente para proteger os mais frágeis.


Relatar a experiência de uma viagem a um país em guerra será sempre um exercício duro, até angustiante, de relato de uma realidade bruta e sem contemplações. É uma viagem com encontros diretos, e não mediados, com quem sofre diariamente com a incerteza da vida ou da morte, não apenas de si próprio, mas do seu marido, filho ou irmão no campo de batalha.

Este é o relato possível de uma viagem ao encontro de Kiev e dos seus habitantes, que vivem diariamente com o material de guerra nas ruas, como tanques ou antiaéreas, com quem se cruzam como quem cruza uma paragem de autocarro. É a história do encontro com pessoas que há um ano atrás viviam pacificamente, mas para quem hoje tudo gira em torno de uma invasão, alertas aéreos e o espectro da morte.

É uma viagem que não esquecerei, fundamentalmente pelas lições de esperança e humildade que vi o povo ucraniano dar ao mundo. Como a história da mãe que viu o seu filho, soldado, morrer à porta de casa na aldeia de Moshchun logo no segundo dia de invasão, mas que quando sabe que sou portuguesa abre um sorriso enorme, iluminado, de agradecimento sincero pela ajuda militar que providenciamos. Um agradecimento que encontra eco nos apelos repetidos à exaustão pelos membros do Governo e do Parlamento Ucraniano de como, sem a ajuda da Europa e dos Estados Unidos, a Ucrânia não terá como vencer esta guerra contra um inimigo que usa jovens soldados como carne para canhão, e atribui seguramente um valor e uma dignidade diferente da nossa à vida humana. Um inimigo russo, dirigido e motivado por maldade pura, que bombardeou igrejas e centros sociais e fez das florestas ucranianas verdadeiros campos minados. A Ucrânia é hoje, foi-me dito, o território no mundo com mais minas. Florestas que, um dia que esta guerra termine, demorarão anos ou décadas até serem seguras.

Relembro a coincidência e o espanto de ter encontrado, à entrada do comboio para Kiev, e depois de um primeiro encontro em Bruxelas há uns meses atrás, Iryna, uma mãe cujo filho esteve preso na maldita fábrica Azovstal até pouco mais ser que um esqueleto humano. É recordar as fotografias que me mostrou. É descobrir na sua face a felicidade por ver em nós uma Europa solidária e comprometida com a sua liberdade e com o seu futuro.

Viajar por estes dias a Kiev é estar numa cidade em que falta luz elétrica várias horas por dia até para as tarefas básicas, numa luta permanente para proteger os mais frágeis. Uma cidade onde a luz mais frequente, é a da lua. É ouvir muitas histórias tristes, num inglês de sotaque carregado, sobre afastamento, dor e famílias destruídas. É ouvir a história do pequeno Stefano, que saiu da Ucrânia na barriga da mãe e deixando o pai na frente de batalha. Ouvir a mãe contar como esteve largos meses em Estocolmo e que, com nove meses, está finalmente a caminho de Kiev para ter oportunidade de conhecer o pai. É, na viagem de regresso, ver uma família separar-se in loco, na fronteira com a Polónia, por o pai não poder prosseguir viagem e sair do país. Uma separação sem prazo ou local para terminar.

Tive oportunidade de reunir com Shkarlet Serhiy, ministro da Educação e Ciência, que me falou sobre como os professores têm investido mais tempo em garantir que os jovens ucranianos consigam ter algumas condições de segurança durante as aulas do que a transmitir conhecimento. Ou sobre como os bancos das Universidades estão mais vazios, devido aos jovens que abandonaram as aulas para se alistar no combate pelas suas vidas, pelas vidas de todos. Ou como tanta falta fazem computadores e tablets nas escolas.

Não posso esquecer como é inspirador ver um povo e um governo com os olhos no futuro, a falar-nos da importância de programas europeus como o Horizonte Europa, e de como o nosso apoio é crítico para evitarem que jovens qualificados, críticos para o desenvolvimento da Ucrânia, acabem por abandonar o país.

É redescobrir que a esperança não acaba, por mais difícil que seja a situação em que se encontram, por mais gélida que possa ser esta guerra e por mais cortante que possa ser este inverno.

É relembrar que, tal como na longa viagem noturna para Kiev, haverá uma aurora e haverá luz ao fundo do túnel, por mais longa e dolorosa que seja essa espera.

É recordar que, apesar de tudo, há gente que não desiste e a quem vale a pena brindar.

Enquanto espero a chegada da manhã neste regresso à Polónia e à segurança, penso que, a quem tudo perdeu, nada resta senão esperança e vêm-me à memória versos de Miguel Torga, sobre desespero, trabalho e acreditar no futuro, mesmo sem se saber se o futuro é risonho.

(...) todo o semeador

Semeia contra o presente.

Semeia como vidente

A seara do futuro,

Sem saber se o chão é duro

E lhe recebe a semente.

Polónia, 8 de fevereiro de 2023

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