Num discurso do Estado da União embrulhado em apelos genéricos ao diálogo no Congresso norte-americano, e carregado de ataques cirúrgicos que provocaram reacções estridentes na bancada do Partido Republicano, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, usou um dos momentos mais solenes — e mais mediáticos — da política do país para apontar a uma esperada recandidatura à Casa Branca.

A ideia de que é preciso concluir um trabalho de recuperação da economia norte-americana, iniciado pela Administração Biden há dois anos, foi o mantra do discurso do Estado da União na madrugada desta quarta-feira (noite de terça-feira em Washington D.C.).

“Vamos terminar o trabalho que começámos”, disse Biden ao Congresso 12 vezes num discurso que durou 72 minutos — mais longo do que o de Março de 2022, mas ainda assim mais curto do que qualquer Estado da União presidido por Donald Trump.

Dirigindo-se aos congressistas do Partido Republicano — cuja maioria na Câmara dos Representantes é essencial para a aprovação de qualquer nova proposta de lei ou de orçamento nos próximos dois anos —, Biden apelou ao diálogo e à obtenção de consensos em temas importantes, dando como exemplo o que foi feito nos dois anos anteriores.

"Se conseguimos trabalhar em conjunto na anterior sessão [do Congresso], não há nenhuma razão para que isso não volte a acontecer na actual sessão", disse o Presidente dos EUA, numa referência ao apoio dos republicanos — principalmente no Senado — à aprovação de algumas das propostas mais importantes da sua Administração, como a reforma das infra-estruturas ou os incentivos no combate às alterações climáticas.

"As pessoas puseram-nos aqui com uma mensagem muito clara. O combate pelo combate, o poder pelo poder, o conflito pelo conflito, não nos leva a nenhum lado", disse Biden. "Em vez disso, puseram-nos aqui para terminarmos o nosso trabalho."

Pré-campanha

É com essa mensagem — de confiança no futuro, mas também de reconhecimento das dificuldades presentes — que o Presidente dos EUA pretende apresentar-se ao país como candidato à eleição de 2024, num anúncio que deverá ser formalizado no início da Primavera.

“No meio da convulsão económica das últimas quatro décadas, muitas pessoas foram deixadas para trás como se fossem invisíveis. Talvez isso tenha acontecido consigo”, disse Biden, olhando para a câmara, numa comunicação com marcas do discurso proteccionista que se impôs na política do país após a eleição de Trump — e da ascensão, à esquerda, de personalidades como Bernie Sanders.

“Você lembra-se dos postos de trabalho que desapareceram, e não sabe se os seus filhos vão poder progredir sem terem de se mudar. Eu compreendo”, disse Biden, um político que nasceu na década de 1940 em Scranton, na Pensilvânia — então uma cidade em rápido declínio —, e que sempre cultivou junto do eleitorado uma ligação às classes trabalhadoras.

Num exemplo de como a promessa de um regresso a tempos anteriores à globalização da economia é algo que une uma grande parte dos eleitorados do Partido Democrata e do Partido Republicano, um dos raros momentos de tréguas entre Biden e os congressistas republicanos foi uma declaração que podia ter sido proferida por Trump.

“Aprovámos a obrigatoriedade de que todos os materiais de construção usados em projectos de infra-estruturas federais terão de ser feitos na América”, disse o Presidente dos EUA, aplaudido por congressistas e senadores de ambos os partidos. “Madeira cortada na América, vidro, pladur, cabos de fibra óptica.”

“Enquanto for eu a decidir, as estradas americanas, as pontes americanas e as auto-estradas americanas serão construídas com produtos americanos”, prometeu Biden.

"Mentiroso!"

Mas a dinâmica da relação entre Biden e o Partido Republicano foi tudo menos pacífica.

Numa quebra das regras de decoro que distinguiram, em décadas passadas, os discursos anuais perante as duas câmaras do Congresso norte-americano, o Presidente dos EUA foi interrompido por um coro de protestos na bancada do Partido Republicano quando se referiu aos planos da oposição para baixar o défice através de cortes nas despesas.

No meio da confusão, ouviu-se uma voz a gritar "bullshit!", e a congressista republicana Marjorie Taylor Greene — cada vez mais uma figura de peso na ala mais extremista do seu partido — chamou “mentiroso” a Biden.

A última vez que isso tinha acontecido foi em 2009, quando o congressista republicano Joe Wilson — que ainda hoje está em funções, e que assistiu ao discurso da madrugada desta quarta-feira — acusou o então Presidente dos EUA, Barack Obama, de ter mentido ao garantir que os imigrantes sem documentos não iriam beneficiar da sua proposta de reforma dos seguros de saúde.

Na altura, Joe Biden estava sentado atrás de Obama — na qualidade de vice-presidente dos EUA e presidente do Senado — e ao lado da então líder da Câmara dos Representantes, a também democrata Nancy Pelosi.

Quando Wilson gritou “Você está a mentir!”, Biden abanou a cabeça como que a mostrar a sua desilusão com o comportamento do congressista republicano, e Pelosi reagiu com uma expressão de estupefacção.

Na última noite, quase 14 anos depois do episódio que testemunhou como vice-presidente dos EUA, Biden foi acusado de mentir ao acusar o Partido Republicano de querer desmantelar dois dos programas de assistência social mais importantes do país — o Medicare, em vigor desde 1965, e que dá acesso a cuidados de saúde a norte-americanos com mais de 65 anos; e a Segurança Social, que paga pensões a reformados, pessoas com deficiência, cônjuges sobreviventes e órfãos, entre outros.

Na verdade — e como o próprio Biden reconheceu em seguida, sublinhando que estava a referir-se a uma “minoria” no Partido Republicano —, a proposta a que o Presidente dos EUA aludiu foi defendida por um senador republicano, Rick Scott.

Segundo o plano de Scott — de que outros senadores e congressistas se afastaram —, todos os programas de assistência social, incluindo o Medicare e a Segurança Social, teriam um prazo de apenas cinco anos, necessitando de uma nova aprovação pelo Congresso no fim desse período.

Em vez de se mostrar desiludido com o comportamento de Greene e de outros republicanos, o Presidente Biden aproveitou os gritos da bancada da oposição para provar aos seus críticos que está longe de ser um político com as funções cognitivas em declínio acentuado.

Mostrando-se agradado com o que disse ser a mudança de posição do Partido Republicano sobre o fim dos programas de assistência social, Biden — um católico devoto — disse que se congratulava com “a conversão”. E concluiu a tirada bem-humorada com a sugestão de que, afinal, não iria ser necessário vetar qualquer proposta republicana nesse sentido.

“Pelo que me é dado a ver, isso não será um problema”, disse Biden.

China e Rússia de raspão

Numa semana dominada pela travessia de um balão de espionagem chinês por território continental dos EUA — o caso mais grave do género de que há registo, segundo a Administração Biden —; e pelo agravamento das tensões, principalmente na Europa, em redor dos apoios à Ucrânia na sua guerra defensiva contra a invasão russa, o Presidente norte-americano falou sobre política externa sem a mesma atenção e pormenor que pôs nos temas internos.

“Que não subsistam dúvidas: tal como deixámos claro na semana passada, se a China ameaçar a nossa soberania, agiremos de forma a proteger o nosso país”, disse Biden, numa referência ao sobrevoo do balão chinês — numa outra das ocasiões em que foi apupado pela bancada republicana, que o criticou por não ter ordenado o abate imediato do aparelho chinês.

Em relação à Ucrânia, Biden prometeu que os EUA vão continuar a apoiar o país militarmente, apesar das críticas de uma ala republicana — onde se inclui Taylor Greene, por exemplo — aos gastos do último ano. A promessa do Presidente norte-americano foi ouvida pela embaixadora ucraniana em Washington, Oksana Markarova, que assistiu ao discurso ao lado da primeira-dama dos EUA, Jill Biden.

"Estaremos ao vosso lado pelo tempo que for necessário", disse o Presidente dos EUA.

Trump rivaliza com resposta republicana

Como tem sido habitual desde a década de 1960, o partido na oposição — neste caso, o Partido Republicano — respondeu ao Presidente dos EUA com uma réplica ao discurso principal, proferido por uma figura em ascensão no partido, a recém-eleita governadora do Arkansas, Sarah Huckabee Sanders.

Filha de um outro antigo governador do Arkansas, o conservador Mike Huckabee, Sanders foi uma das porta-vozes da Casa Branca que mais se distinguiram durante o mandato de Trump. Na réplica a Biden, centrou o seu discurso nas críticas a uma suposta "fantasia woke" imposta ao país pelo Partido Democrata e pelo Presidente dos EUA.

"Quer Joe Biden acredite nestas loucuras, quer seja simplesmente fraco de mais para resistir a elas, a sua Administração foi sequestrada pela esquerda radical. A linha divisória na América já não é entre a direita e a esquerda; é uma escolha entre a normalidade e a loucura", disse Sanders.

Na mesma comunicação, a governadora do Arkansas, de 40 anos, sugeriu que Biden, de 80, está velho de mais para se recandidatar à Casa Branca, e disse que chegou a hora de uma nova geração assumir os destinos do país — mas não fez qualquer comentário sobre a candidatura de Trump, de 76 anos, à eleição de 2024.

Quase ao mesmo tempo, Trump fez o seu próprio discurso de resposta ao Presidente dos EUA, em paralelo à resposta oficial do Partido Republicano.

Numa mensagem gravada em vídeo, o anterior Presidente norte-americano começou o seu discurso de dois minutos com o anúncio de que aquele era "o verdadeiro Estado da União".

"Sou candidato a Presidente para pôr fim à destruição do nosso país e para concluir o trabalho inacabado de tornar a América grande outra vez", disse Trump.