Desde 1700, a área de zonas húmidas que o mundo perdeu é equivalente à dimensão da Índia, algo como 3,4 milhões de quilómetros quadrados (km2). É muito, mas o estudo publicado na revista Nature que tem como principal autor Etienne Fluet-Chouinard, da Universidade de Stanford (Estados Unidos), revela que as perdas são menores do que aquilo que se calculava até agora.
“Estão provavelmente sobrestimados os cálculos feitos anteriormente de que se tinham perdido 70% a 80% das zonas húmidas [do planeta”, disse ao PÚBLICO, por email, Etienne Fluet-Chouinard. A sua equipa diz que o valor real das perdas desde 1700 é de 21%. “Sabemos que a nossa estimativa global é conservadora, o valor real está provavelmente entre os 21% e os 35%”, explicou o investigador.
Mas porque é que as análises anteriores davam valores tão mais elevados? “Extrapolaram a partir de dados locais ou regionais concentrados em zonas onde houve perdas elevadas, sem levar suficientemente em consideração as vastas zonas húmidas que continuam a existir nas latitudes do Árctico e tropicais (por exemplo, o Norte do Canadá, a planície da Sibéria, as bacias dos rios Amazonas e Congo)”, explicou Fluet-Chouinard.
O que se passou em Portugal
Portugal não é mencionado no artigo, surge apenas como parte do mapa da Europa. Mas Etienne Fluet-Chouinard disse ao PÚBLICO qual a perda de zonas húmidas estimada para Portugal, com os seus métodos: “Os nossos resultados sugerem que cerca de 42% das zonas húmidas se perderam desde 1700, através de uma combinação de drenagem para criar terras agrícolas, conversão para o cultivo de arroz e áreas urbanas”, adiantou.
Mas faz uma ressalva: “No entanto, o nosso método global tem resultados mais fracos em países pequenos e ao longo de zonas costeiras. O nosso mapa global não substitui avaliações nacionais detalhadas dos recursos de zonas húmidas”, sublinha o investigador.
As perdas de zonas húmidas ao longo dos últimos três séculos concentraram-se na Europa, Estados Unidos e China. Na verdade, mais de 40% das perdas globais aconteceram em apenas cinco países: Estados Unidos, China, Índia, Rússia e Indonésia, dizem os investigadores. De longe, a maioria das zonas húmidas que se perderam foram reconvertidas para terras agrícolas (61,7% do total), seguidas do cultivo de arroz (18,2%) e criação de áreas urbanas (8%).
Embora a destruição de zonas húmidas tenha desacelerado na maioria dos países, as perdas continuam em algumas regiões, como na Indonésia, onde pântanos de turfeiras tropicais continuam a ser dragados para criar plantações industriais de óleo de palma e outras culturas.
Serviços do ecossistema
As zonas húmidas prestam importantes serviços do ecossistema – armazenar carbono, que assim não vai para a atmosfera, agravando o efeito de estufa, disponibilizar água potável ou filtrar resíduos e melhorar a qualidade da água, por exemplo. Desde 1971 que foi internacionalmente reconhecida como prioritária a sua conservação, através da Convenção de Ramsar. O ponto seis dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas reafirma também a importância de preservar os ecossistemas das zonas húmidas.
No entanto, é difícil obter registos históricos sobre a evolução das zonas húmidas. “Historicamente, não eram consideradas um recurso valioso, como as florestas, por exemplo. [As zonas húmidas] eram consideradas terras não produtivas e terrenos férteis para o surgimento de doenças. Portanto, no passado, não era prioridade para as autoridades manter registos sobre elas”, explica Etienne Fluet-Chouinard.
“Em vez disso, os Governos faziam censos sobre as terras agrícolas resgatadas [das zonas húmidas, por exemplo], e nós usamos esses dados (alguns deles com mais de 100 anos) para calcular qual seria a área original das zonas húmidas”, especifica o cientista.
Conseguiram registos de drenagem de zonas húmidas e alterações dos usos da terra em 154 países, o que permitiu desenhar mapas da distribuição de áreas drenadas e convertidas no passado e comparar o que seria a geografia das zonas húmidas de 1700 com a da actualidade.
Mas continua a não ser muito fácil acompanhar a evolução destes ecossistemas, explica Etienne Fluet-Chouinard. “Mesmo durante as últimas décadas, quando passaram a estar disponíveis imagens de satélite, a nossa capacidade de monitorização das zonas húmidas fica muito atrás da de acompanhar a evolução das florestas”, diz. É um desafio detectar zonas húmidas a partir do espaço: “A dificuldade está na sua hidrologia sazonal e diversidade de coberto vegetal”, sublinha.
O trabalho da equipa de Etienne Fluet-Chouinard, no entanto, “conseguiu integrar dados de um espectro largo de fontes antigas e novas numa análise geograficamente abrangente”, escreve Nicholas Murray, da Universidade James Cook, em Townsville, na Austrália, num comentário na Nature que acompanha a publicação do artigo.
Apoiar preservação da biodiversidade
“Estes dados devem ser o suporte de modelos que simulam o sistema da Terra e melhorem a nossa compreensão dos padrões de longo prazo de mudanças dos usos da terra. Estes influenciam, entre outras coisas, a persistência da biodiversidade nas zonas húmidas, e permitem caracterizar o Antropoceno (o nome proposto para a fase geológica na qual a actividade humana é a influência dominante no ambiente”, escreve ainda Nicholas Murray.
“Compreender a trajectória ao longo do tempo dos ecossistemas de zonas húmidas dá-nos contextos cruciais para desenvolver metas de protecção ambientais globais (por exemplo, o Acordo para a Biodiversidade de Kunming-Montreal, assinado em Dezembro)”, explica Etienne Fluet-Chouinard.
“De uma perspectiva de gestão, os nossos mapas ajudarão a estabelecer prioridades para a protecção e restauro de zonas húmidas nas regiões onde essa acção é mais necessária, com o objectivo último de travar a perda de biodiversidade e preservar os serviços que os ecossistemas prestam às populações humanas”, salienta o investigador.
Os dados da equipa permitirão ainda compreender melhor em que medida a drenagem das zonas húmidas contribuiu para aumentar a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera, que causa o efeito de estufa que está na origem das alterações climáticas, sublinha o cientista, que deixa ainda o alerta: “Ter um número global é importante para enquadrar a situação: restam-nos zonas húmidas em alguns locais, e temos de agarrar a oportunidade já para garantir que as perdas não cheguem a 70% ou 80% no futuro.”