Nos tempos antigos, a tradição e determinado tipo de conhecimento só eram transmitidos ao receptor que estivesse preparado para os receber ou interpretar. Nos tempos de hoje, qualquer um o pode procurar – resta saber se está preparado para as respostas que encontrar.
Quando tive o primeiro contacto com o ChatGPT, uma nova ferramenta com modelo de linguagem, fiquei impressionado. Começando por fazer perguntas simples, recebi respostas curtas e objectivas, o que me levou a aprofundar o nível de complexidade. Quando as respostas eram menos precisas, reformulava-as e o ChatGPT respondia de forma mais assertiva. Interiorizei que esta ferramenta é melhor do que o Google e que me vai tornar mais eficiente.
Mas afinal o que é o ChatGPT? A resposta fácil é dizer que é inteligência artificial. Mas, na realidade, é uma linguagem baseada em machine learning que identifica padrões no conjunto de informação que a informa para formar respostas.
Durante o período em que estive a fazer testes, pedi ao ChatGPT que redigisse um e-mail com um determinado contexto para responder educadamente a um fornecedor, et voilà: em cinco segundos recebi a resposta, personalizei-a e enviei-a. Poupei uns bons minutos, mas fiquei com um ligeiro sentimento de culpa.
Nos dias seguintes, apresentei o ChatGPT aos meus colegas advogados, com temas jurídicos concretos, e, pela sua expressão, percebi que ficaram mais impressionados do que eu – mas lá foram menorizando as respostas, dizendo que era português do Brasil e que existiam imprecisões técnicas…
A partir daqui, estes meus colegas passaram a enviar-me as mais diversas notícias sobre o tema, até que me chegou a mais controversa: no estado do Minnesota (nos Estados Unidos da América), o ChatGPT foi submetido ao exame local da Ordem dos Advogados e, pasmem-se, passou no exame (ainda que com aproveitamento abaixo da média). Só me surpreendeu o facto de a classificação ser baixa, mas é preciso perceber que esta é uma versão de testes, que está em fase de levantamento de capital. Daqui a uns meses, com mais alguns milhões de USD de investimento e com melhoramentos, provavelmente já poderá passar com distinção.
Todas as tecnologias revolucionárias levam-nos a pensar em novas finalidades, dentro da realidade que conhecemos e vivemos. De imediato, não há como ignorar a potencial ameaça a várias profissões, sobretudo das que vivem do pensamento e da interpretação de textos consolidados, com grandes volumes de doutrina.
Felizmente, depois do choque costuma vir a aceitação. Dei por mim a pensar sobre o potencial transformativo nessas mesmas profissões. A tecnologia já está bem enraizada nas nossas vidas, pelo que rejeitá-la não é sequer uma possibilidade, é simplesmente estupidez (e diagnóstico de morte certa do negócio num futuro mais ou menos próximo). As profissões que tentarem, de modo concertado, evitar a integração tecnológica por questões doutrinárias serão canceladas pelo ecossistema, dado que este está assente na tecnologia.
Quando vemos uma máquina a conseguir qualificar-se para exercer uma profissão regulada, soa o alerta de que é preciso pensar o futuro, antecipando-o e preparando-o. Será que os gestores de uma organização poderão, em consciência, abdicar de desenvolver os seus próprios ChatGPT, com base no conhecimento acumulado da organização, sabendo que estes, em segundos, podem gerar uma primeira versão de um documento? Podem fazê-lo, mas, num mercado altamente concorrencial, basta que uma primeira organização tome esse passo para que as regras colectivas do jogo mudem radicalmente – sem tempo de adaptação ou aprendizagem.
Como é natural, há outras questões que têm de ser ponderadas, como por exemplo o modelo formativo de novos advogados, tendo em conta que existem tarefas de pouco valor – normalmente atribuídas às pessoas com menos experiência – que podem ser completamente automatizadas. Fico curioso para saber qual a posição das faculdades de Direito e da Ordem dos Advogados sobre o tema, sabendo que a tecnologia, nos seus planos formativos, está longe de ser uma prioridade.
Apesar dos receios e dúvidas, julgo que podemos ter uma certeza: a criatividade humana, desde que permanentemente estimulada, tem valor – e este é bastante elevado em sectores como o jurídico, que depende do intelecto e da capacidade de imaginar soluções alternativas para um caso concreto, mesmo sem conhecer padrões ou casos semelhantes. A tecnologia nunca vai substituir o advogado, pelo contrário, contribui já decisivamente para que o seu trabalho seja mais eficiente e valioso. Mas para tal, é obrigatório repensar os processos, procedimentos e culturas de trabalho.
E sobra ainda uma incógnita fundamental nesta equação, sobre a qual ainda nada ou quase nada ouvi: o que terão os clientes a dizer sobre estas mudanças? Garantidamente, ainda ouviremos falar muito sobre este tema.