Guerra na Ucrânia força Suíça a debater a neutralidade histórica
Por lei, os compradores de armamento suíço não podem revender armas a países em conflito. Mas as empresas do sector dizem que é tempo de mudar a tradição.
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A Suíça está prestes a romper com a tradição de séculos como um Estado neutro, numa altura em que uma mudança no sentimento público e político no sentido pró-ucraniano tem pressionado o Governo a acabar com a proibição às exportações de armamento para zonas de guerra.
Os compradores de armas suíças estão impedidos legalmente de as reexportarem. Esta restrição é vista pelos representantes da numerosa indústria de armamento do país como estando a prejudicar os negócios.
Os apelos dos vizinhos europeus da Suíça para autorizar transferências para Kiev têm subido de tom à medida que a ofensiva russa se intensifica, e as duas comissões parlamentares de segurança emitiram recomendações para que as regras sejam suavizadas. Os deputados dividem-se quanto ao tema.
“Queremos manter-nos neutros, mas estamos integrados no mundo ocidental”, afirmou o líder do FDP, de centro-direita, Thierry Burkart, que apresentou uma moção ao Governo para que autorize a reexportação de armas para países que partilhem os valores democráticos da Suíça.
Ao abrigo da neutralidade suíça, que remonta a 1815 e está inscrita num tratado de 1907, a Suíça não pode enviar armamento directa ou indirectamente para países em guerra. Isso significa que vigora um embargo à venda de armas à Ucrânia e à Rússia.
Em teoria, os países terceiros podem pedir a Berna que autorize a reexportação de armas suíças que estejam armazenadas, mas a permissão é quase sempre negada.
“Não deveríamos ter poder de veto para impedir que outros apoiem a Ucrânia. Se o estamos a fazer, então estamos a ajudar a Rússia, o que não é uma posição neutra”, disse Burkart à Reuters.
“Outros países querem apoiar a Ucrânia e fazer algo pela segurança e estabilidade da Europa… E não conseguem perceber porque é que a Suíça tem de dizer que não.”
Cada vez mais eleitores suíços concordam. Uma sondagem da Sotomo publicada no domingo mostrava que 55% dos inquiridos defendiam uma autorização de reexportação de armas para a Ucrânia.
“Se tivéssemos feito esta pergunta antes da guerra, a resposta [afirmativa] seria provavelmente inferior a 25%. Falar de mudar a neutralidade era um tabu no passado”, disse à Reuters o co-director da empresa de sondagens GFS-Bern, Lukas Golder.
O dinheiro fala?
O Governo – sob pressão do exterior depois de ter rejeitado pedidos da Alemanha e da Dinamarca para reexportar veículos blindados e munições para tanques antiaéreos – disse que não irá condicionar os debates parlamentares.
Berna “adere ao enquadramento legal existente e irá lidar com as propostas a seu tempo”, disse um porta-voz do Departamento de Assuntos Económicos, responsável pelas questões relacionadas com a exportação de armamento.
Bukart disse ter recebido sinais positivos em relação a uma mudança na lei por parte de outros partidos num Parlamento fragmentado.
O partido Social-Democrata, de centro esquerda, diz ser a favor das mudanças, tal como os Verdes Liberais, embora os Verdes mantenham a oposição. A deputada Verde Marionna Schlatter diz que permitir o envio de armas para a Ucrânia se arrisca a ser um “atalho traiçoeiro” para acabar com todas as restrições e que é incompatível com a neutralidade suíça.
O Partido do Povo Suíço (SVP), de direita, o mais numeroso na câmara baixa e um defensor habitual da neutralidade, parece estar dividido.
“Permitir o fornecimento de armas para um país envolvido num conflito armado pode destruir a base da paz e prosperidade do nosso país”, afirmou o deputado do SVP, David Zuberbueler.
Werner Salzmann, membro da câmara alta do Parlamento pelo SVP, discorda e recordou, numa coluna de opinião no Aargauer Zeitung, os possíveis danos colaterais para a indústria de defesa suíça, que tem apoiado a campanha a favor da mudança legislativa.
O sector, que inclui as multinacionais Lockheed Martin e Rheinmetall, vendeu armamento no valor de 800 milhões de francos suíços (806 milhões de euros) em 2021, de acordo com dados do Governo, o que põe a Suíça entre os 15 maiores exportados a nível mundial.
Possuir uma indústria de armamento forte tem andado de braço dado com a tradição de neutralidade, mas o equilíbrio desta dualidade pode agora estar em causa, segundo a SwissMem, a associação que representa o sector.
“Alguns dos nossos membros perderam contratos ou deixaram de investir na Suíça por causa das restrições actuais”, disse o director da SwissMem, Stefan Brupbacher. “A nossa situação actual enfraquece a nossa política de segurança, diminui a credibilidade da nossa política externa e prejudica as nossas empresas”, afirmou. “É tempo de mudança.”