A experiência de ver um filme em sala acaba por obter um estatuto sagrado, para vários cinéfilos. Contemplar a obra no seu expoente máximo exige o grande ecrã, a escuridão e o completo silêncio, ingredientes essenciais ao tão desejado escapismo. O que esta visão falha em reconhecer é que, por vezes, a quebra de um mastigar de pipocas, a luz de um telemóvel ou o burburinho de um comentário inusitado podem ser bem-vindos... durante a sessão certa. E assim foi, a 27 de Janeiro, na exibição do filme-concerto, Billie Eilish: Live at the O2.
Após ser catapultada para os ouvidos do grande público ao ritmo de Bad Guy, escalar tops com dois discos de sucesso e arrecadar sete prémios Grammy, a cantora Billie Eilish, de 21 anos, embarcou na Happier Than Ever, The World Tour, com direito a seis paragens, na O2 Arena, em Londres. A ocasião semeou na jovem a vontade de oferecer cinema à escala mundial. Vinte câmaras, comandadas pelo realizador Sam Wrench, captaram, então, os ritmos de When We All Fall Asleep, Where do We Go? (2019) e Happier Than Ever (2021), num espectáculo disponível, por apenas uma noite, na sala mais próxima de ti. O vibrar colectivo do concerto pop preparava-se para fazer estremecer os quatro cantos da projecção.
Pé ante pé, os presentes começam a levantar-se. Ocupa-se o espaço vazio entre a tela e os espectadores, qual primeira fila de uma performance esgotada. O fandom adolescente substitui a audiência heterogénea de frequentadores de cinemas. Entrámos na igreja de Billie Eilish. À semelhança do ritual religioso, os fiéis conhecem bem a coreografia. Se, na junção das canções Oxytocin e Copycat, a artista ordena que, ao seu sinal, todos se agachem e irrompam em saltos, o efeito de moche é replicado fora do ecrã. Se as baladas mais comoventes, como Your Power e Ocean Eyes, pedem lanternas de telemóvel acesas, as luzes espalham-se pela sala, ao ponto de tornar a acção filmada quase imperceptível. Se, lá longe no O2, se distinguem abraços e lágrimas gerados pela presença física do ídolo, parece que um pouco de Billie Eilish também toca os que vêem em diferido.
Embora surpreendente, não é difícil explicar o fenómeno. Eilish empresta o seu tom sussurrado às dores de crescimento de muitos, desde o visual a roçar o emo ao cancioneiro de emoções. As melodias mais negras fundem-se no coming of age luminoso, delegando à objectiva a tarefa de testemunhar a evolução de uma prolífica, ainda que curta, carreira. Em 360 graus, a cantora passeia pela plataforma, onde o seu irmão Finneas O’Connell e o baterista Andrew Marshall tomam conta do instrumental; escorrega rampa abaixo, sem uma nota fora do lugar; e ascende aos céus, vendendo a ilusão de que, se estivéssemos junto ao palco, era aquilo que veríamos. Até os mais cépticos, são obrigados a olhar, escutar e reconhecer o casamento perfeito entre a quinta e a sétima arte.
Já se sabe que as camadas mais jovens, na sua maioria, femininas e queer, apaixonadas por artistas pop, são as primeiras a ser ridicularizadas. O rótulo de “histeria” é prontamente aplicado pelos mesmos que, quiçá, iriam criar desacatos à porta de um jogo de futebol. Mas quem entende (isto é, quem esteve horas em filas, a criar amizades à conta de um elo musical comum), entende. Quando as luzes começam a diminuir e, numa só voz, se entoa o crescendo da faixa Happier Than Ever, regressamos a tempos em que uma simples música trazia compreensão ao maior dos incompreendidos. Éramos mais felizes que nunca e não sabíamos.