É preciso que um autor seja nomeado Nobel da Literatura para as suas obras ganharem destaque nas prateleiras das livrarias, como aconteceu com o prémio Nobel da Literatura de 2021, Abdulrazak Gurnah, e de 2022, Annie Ernaux, em que as edições proliferaram pelas livrarias portuguesas.
Um dos livros em destaque de Annie Ernaux foi escrito em 1999 (publicado em 2000) e vinte anos depois, em 2021, foi adaptado para cinema, sendo editado novamente em livro, em Portugal, um ano depois, tornando-se um dos seus maiores sucessos. Confesso que até este ano não conhecia o trabalho literário desta autora e desconhecia as problemáticas abordadas e, por isso, a edição portuguesa das suas obras foi fundamental para iniciar a leitura. Rapidamente procurei mergulhar no seu mundo literário e escolhi O Acontecimento como ponto de partida, um livro autobiográfico onde Annie relata a crueldade e o sofrimento do seu aborto clandestino nos anos 60 quando, em França, este ainda era ilegal.
Através da simbiose entre ficção e memória, a autora expõe a vergonha, o medo e o desespero de quem tenta abortar mas é crime para quem o deseja e para os médicos que o praticam. Assim, ao longo da obra, assistimos à luta constante da personagem em busca de alguém que lhe conceda o aborto e lhe permita a sua libertação. Esta foi uma luta de várias mulheres ao longo de vários séculos em diferentes países onde a maternidade não era uma escolha mas uma imposição.
Curiosamente, este livro destaca-se num ano em que a ilegalização do aborto retorna ao debate político e social, sobressaindo-se vozes contra esta prática e defendendo o regresso da sua ilegalização, retrocedendo, assim, a liberdade feminina a uma maternidade forçada. Em 2022, o aborto foi ilegalizado em alguns estados nos EUA e é defendido, novamente, em vários países. Na França, o placo de acção da narrativa de Ernaux, o aborto era ilegal nos anos 60 mas era praticado na clandestinidade, colocando a vida de muitas mulheres em perigo, vitimizando algumas e, só, cerca de dez anos depois, em 1975 é que fora legalizado. No caso português, a luta pelo direito ao aborto foi mais longa e só no século XXI é que foi totalmente concretizada, surgindo as primeiras reivindicações no seguimento da revolução dos cravos, em 1974, sobressaindo-se vozes de várias mulheres, mas só em 2007 é que se concretiza a despenalização do aborto.
Durante séculos e, ainda, na actualidade o aborto fora e é um assunto polémico que divide a sociedade em dois pólos, os que o defendem e os que o rejeitam. No último século, as mulheres lutaram pela liberdade de escolha da maternidade e alcançaram-na em muitos países, mas em alguns destes voltaram a perdê-la, retomando a sua posição inicial.
Ao longo do tempo, como o aborto era ilegal, era praticado na clandestinidade, retrata Annie Ernaux, o que implicava um perigo para a saúde da mulher e, em alguns casos, uma ameaça para a sua própria vida, mas era a única solução para quem desesperadamente não desejava, naquele momento, desempenhar um papel que lhe era imposto, o de mãe. Nesta obra, Annie retrata o trauma causado pela dificuldade em abortar e os próprios perigos para a sua saúde resultantes do seu aborto clandestino, mas reconhece que foi necessário "sofrer essa provação e esse sacrifício para desejar ter filhos. Para aceitar, no (seu) corpo, essa violência da reprodução e, por sua vez, transformar-se em lugar de passagem de gerações’’ (Ernaux, 2022, p. 82).
Este acontecimento marcou a vida de Annie e deu título à sua obra, pois fora traumático e, simultaneamente, libertador, mas este acontecimento, também, marcou a vida de outras mulheres que, durante anos, só na clandestinidade conseguiam abortar. A leitura desta obra propicia ao leitor uma viagem pela luta da personagem pelo aborto e desperta uma reflexão sobre a sua luta, ao longo dos século e que continua na actualidade.