Rômulo e Manuel baixam a factura da luz, produzindo em casa a energia de que precisam
Produzir energia limpa em casa e abater a factura da luz: está à distância de um investimento relativamente significativo, mas Portugal já tem quem o faça há alguns anos.
Há dois veículos eléctricos na casa de Rômulo Sellani: um carro e uma mota. Todas as noites, o brasileiro de 54 anos, que vive em Portugal há 33, vai à garagem e põe-nos a carregar — consumindo energia que é, em grande parte, produzida pelo próprio Rômulo.
Este especialista em electrotecnia, que trabalha há três décadas na manutenção electrónica do Aeroporto Sá Carneiro, no Porto, tem vários painéis solares instalados na sua casa, em Vila Nova de Gaia. Oito dos seus mais de 30 compõem uma unidade de produção de energia eléctrica para autoconsumo (UPAC).
Rômulo produz localmente energia renovável que o próprio usa para satisfazer as suas necessidades de consumo. Consegue reduzir a quantidade de dinheiro que gasta mensalmente em luz. Consegue também vender à rede eléctrica o excedente (a energia que gera, mas não chega a consumir).
“Costumava gastar 50 a 60 euros por mês em mobilidade eléctrica. Agora, consegui cair para os 15 a 20”, diz ao PÚBLICO. “É muito mais económico.”
Desde 2015 que a lei em Portugal permite aos consumidores terem UPAC nas suas casas e serem também produtores. Não é propriamente um investimento muito barato (já lá vamos), mas as vantagens são várias. Depois dos gastos iniciais na compra e instalação dos equipamentos, as pessoas podem poupar na factura da luz. E a produção descentralizada de energia renovável é algo que traz benefícios para o planeta.
Dinheiro no telhado que dá lucro
Antes de 2015, já era possível ser-se um microprodutor, mas a electricidade tinha obrigatoriamente de ser vendida à rede. Rômulo também esteve (e continua) neste mundo: no Verão de 2014, instalou 26 painéis, que até hoje continuam a produzir energia solar para injecção na rede.
Estes painéis custaram-lhe à volta de 13 mil euros (cerca de dez mil euros mais IVA). “Era dinheiro que estava parado no banco, a render muito pouco. Passei-o para o telhado, onde agora dá lucro”, diz. “Eficiência energética, por um lado, e financeira, por outro”, acrescenta, dizendo que daqui a quatro anos deverá, naquilo que ao “retorno de investimento” diz respeito, conseguir “recuperar o IVA da instalação” dos painéis.
Os painéis da UPAC, instalados em Outubro de 2022, são apenas oito, mas são também mais potentes do que os outros 26. Estes 26 são módulos de 120 watts cada um. Já os da UPAC são de 475 watts cada.
Isto permite mais produção de energia, que depois é guardada numa bateria com capacidade total de armazenamento de 14 quilowatts (kW), ou 14 mil watts. “O carro, que é usado sobretudo pela minha esposa, anda uns 100 quilómetros [km] por dia. Precisa de 15 mil watts de energia. A moto, que eu uso nas viagens casa-trabalho e vice-versa, anda 55 km por dia. Precisa de 3000 watts. Tudo somado, as nossas necessidades energéticas diárias para a mobilidade rondam os 18 mil watts. A bateria não consegue armazenar isso tudo. Mas já conseguimos poupar quase 80%”, diz Rômulo.
Para se ter uma UPAC não é preciso comprar-se uma bateria, que naturalmente torna o investimento mais significativo, mas Rômulo não teve alternativa, pois o seu consumo é “diferido”. “Os painéis produzem durante o dia, nas horas de sol, e eu só carrego os veículos à noite.”
Investimento de 5000 a 6000 euros, poupança de 1500€ anuais
Os pais de Manuel Nina, co-fundador da Goparity (empresa financiadora de investimentos sustentáveis), não têm de se preocupar com baterias. Manuel Nina mora em Lisboa; os pais vivem numa moradia na vila alentejana de Fronteira. Idosos (têm já mais de 80 anos), costumam passar o dia dentro de casa. A energia gerada pela UPAC que se encontra instalada na sua habitação é consumida no próprio momento da produção. Não existe necessidade de armazenamento.
Não é a carregar veículos eléctricos, que não têm, que os pais de Manuel Nina consomem a energia. É a fazer as tradicionais lides domésticas.
“Anualmente, dá para poupar em electricidade 20% a 30%”, afirma Manuel Nina, dizendo que, para reduzir o recurso à energia que vem da rede eléctrica, os pais procederam a uma “mudança de consumos”. “Posso dar um exemplo: pôr as máquinas de lavar loiça e roupa a trabalhar durante o dia é uma boa maneira de garantirmos que a energia vem directamente dos painéis”, observa Manuel Nina, formado em Engenharia Mecânica.
“Há alturas do ano em que poupamos mais do que 30%”, continua. “Pagamos só 70% ou menos de 70% do que pagávamos antigamente. Nós consumimos perto de 4000 quilowatts-hora [kWh] por ano — o valor é alto, porque lá em casa é tudo eléctrico, não temos gás de botija. Agora, cerca de 1000 kWh vêm dos painéis.”
A que valores é que isto equivale em termos de poupança financeira? “Todos os anos, costumávamos pagar à volta de 5000€ em luz. Desde que instalámos os painéis, passámos para os 3500€. Ou seja: estamos a poupar cerca de 1500€ por ano em electricidade. É uma boa conta.”
Cinco mil euros anuais correspondem a perto de 415€ por mês. Era pesada, a factura antiga. “A casa é muito grande (é um T6). Somos três filhos, quatro sobrinhos... Quando se junta a família toda, o que acontece várias vezes por ano, somos 12. É uma casa com muita utilização”, diz.
Manuel Nina, que estima passar dois fins-de-semana por mês em Fronteira, já não sabe dizer ao certo o ano em que a UPAC foi instalada (terá sido entre 2017 e 2018, assinala). Inicialmente, foram instalados seis painéis. Muito recentemente (já em 2023), foram instalados mais quatro. A compra e instalação dos primeiros painéis ficaram por 5000 a 6000 euros. O investimento mais recente custou 5800€.
Não são quantias insignificantes. Rômulo Sellani também gastou muito dinheiro para instalar a sua UPAC. “Dez mil euros, isto porque tive de comprar a bateria. Sem ela, teria gasto só metade disso, cinco mil.”
São valores relevantes. Manuel Nina argumenta, porém, que “hoje em dia uma UPAC é um investimento com retorno garantido para quem viva numa moradia, com o seu próprio telhado”. “Pode custar perto de 5000€ e [a pessoa] consegue obter retorno”, na forma de “poupança na factura da electricidade”, em “cinco anos” — “ou menos, se tiver um veículo eléctrico”.
“Isto não é para todas as casas. Se o telhado da pessoa não lhe permitir instalar os seus painéis virados a sul, que é o lado que aqui em Portugal leva com o sol mais tempo, eles nunca produzirão tanto. Mas se a pessoa tiver como deixar os painéis numa boa posição e, mais cedo ou mais tarde, comprar um carro eléctrico — o que é algo que eu quero fazer em breve —, é um investimento amortizável. É como pôr janelas novas para ter a casa mais quentinha. Desde que a pessoa tenha capacidade de investimento, justifica-se [instalar uma UPAC]”, opina o co-fundador da Goparity.
O Portugal do futuro é “um país de bairros solares”?
Desde 2022, esta empresa tem “financiado condomínios, associações e empresas que desejem implementar” comunidades de energia renovável (CER) e autoconsumos colectivos (ACC).
O regime das CER e do ACC existe no nosso quadro jurídico desde Outubro de 2019. Tem saído do papel a um ritmo lento, mas existe para permitir a produção descentralizada e utilização comuns de energia solar. Vários condóminos, por exemplo, podem juntar-se e investir numa UPAC que alimente todo o prédio.
Rômulo Sellani, que diz ainda ter bastante espaço no seu telhado para instalar mais painéis, quer passar para o ACC. Na rua onde mora, moram também os sogros e o cunhado. O funcionário do Aeroporto Sá Carneiro, que integra a Coopérnico (cooperativa distribuidora de energias renováveis que tem tentado incentivar os seus membros a apostar em soluções de autoconsumo), quer pôr toda a família a usufruir de energia limpa autoproduzida — e a baixar a conta da luz.
Manuel Nina, que também é cooperante da Coopérnico, também vê o ACC com muito bons olhos. Acredita que ele pode “transformar as nossas cidades em cidades mais sustentáveis e resilientes”. “É este o trabalho que Portugal tem pela frente nos próximos cinco a dez anos: o de ter, em todos os prédios de quatro ou cinco andares, unidades de produção de energia solar, que depois possa não só ser consumida pelos próprios habitantes dos prédios, mas também partilhada com vizinhos e lojas. É um grande contributo para não estarmos tão dependentes do gás natural”, afirma, quiçá ambiciosamente.
Portugal, um país com muitas horas de sol por ano, “tem todas as condições para nos próximos cinco anos se tornar um país de bairros solares”, cheios de sistemas fotovoltaicos adquiridos colectivamente e a suprirem as necessidades energéticas de várias pequenas comunidades, acrescenta.
Electricidade como o pão ou o arroz
Perguntamos a Manuel Nina se, tendo em conta que o custo destes investimentos não é pequeno, esta não será uma visão talvez demasiado utópica. Eis como responde. “Antigamente, as pessoas viam os primeiros carros e pensavam: ‘Se calhar, um dia vamos todos poder deixar de andar de carroça.’ Acho que agora estamos numa fase parecida: ‘Se calhar, um dia vamos todos ter dinheiro para ter painéis solares e produzir energia.’”
A energia solar, continua, não é como a que vem da queima de combustíveis fósseis. “Os sistemas fotovoltaicos são caros no início, mas depois, quando começam a produzir [energia], fazem-no de graça. Os custos operacionais são praticamente nulos”, refere, dizendo acreditar que Portugal pode ter tantos ACC que a electricidade pode “passar a ser como o pão ou o arroz”: “um bem de consumo essencial que é baratíssimo”.
“Num país como Portugal, toda a gente deveria ter direito a um bocadinho de electricidade gratuita — a quantidade de luz que habitualmente nos fica por cinco ou dez euros mensais, por exemplo. O mínimo de electricidade suficiente para aquecer as casas no Inverno”, diz Manuel Nina, continuando a partilhar a sua visão “sonhadora” de um futuro possível.
O engenheiro mecânico de formação faz referência ao fundo soberano da Noruega, “cujo dinheiro vem do gás que os noruegueses extraem do mar do Norte”. “Todos os anos, a população recebe uma determinada quantia de dinheiro deste fundo, na forma de escolas, polícias e tribunais, por exemplo. Nós, que somos um país com muitas horas de sol, podíamos implementar algo do género: se temos ‘x’ painéis, os cidadãos deveriam ter direito a um determinado mínimo gratuito de energia, para acabar com a pobreza energética.”