Iraquianos chocados com o assassínio de uma youtuber pelo pai

O Iraque não tem nenhuma lei contra a violência doméstica ou os chamados “crimes de honra”. Tiba al-Ali tinha 22 anos e foi morta quando regressou a casa, depois de viver na Turquia.

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Tiba e o seu noivo, Mohammad, numa imagem de um dos seus vídeos YouTube

Os vlogs (vídeo blogues) que publicava no seu canal de YouTube mostram uma vida descontraída e alegre e uma relação cúmplice e romântica com Mohammad, o seu noivo. Mohammad era uma presença muito frequente nestes vídeos, onde imagens da casa da jovem intercalavam com passeios na rua, visitas a centros comerciais, sessões de maquilhagem ou exercício. Vídeos idênticos ao de outras estrelas do YouTube de tantas nacionalidades. Tiba al-Ali, de 22 anos, era iraquiana e viveu os últimos anos na Turquia. Tinha regressado há pouco ao Iraque e foi assassinada esta semana pelo pai.

A morte de Tiba foi confirmada na sexta-feira pelo porta-voz do Ministério do Interior iraquiano, Saad Maan, e provocou uma onda de indignação nas redes sociais, com alguns activistas dos direitos humanos e políticos a apelarem à realização de um protesto este domingo, diante de um tribunal de Bagdad. “Exigimos os direitos de Tiba”, lê-se numa hashtag usado em mensagens que condenam o assassínio e exigem que o seu pai seja responsabilizado.

“Nas nossas sociedades, as mulheres são reféns de costumes retrógrados por causa da ausência de leis dissuasoras e de medidas dos governos – o que actualmente não é compatível com a dimensão dos crimes de violência doméstica”, escreveu no Twitter Ala Talabani, veterana política iraquiana, líder do partido União Patriótica do Curdistão.

Um rascunho de um projecto de lei contra a violência doméstica foi apresentado pela primeira vez no Parlamento iraquiano, em 2014, mas pouco avançou desde então, com o debate a enfrentar a oposição de vários partidos. Alguns deputados diziam temer que a lei viesse a aumentar divórcios, outros estavam contra a possibilidade de organizações não-governamentais gerirem abrigos para vítimas. A Amnistia Internacional recorda que uma nova versão da Lei Anti-Violência Doméstica esteve em cima da mesma entre 2019 e 2020, chegando ao Parlamento, mas sem nunca ser votada.

De acordo com o que Saad Maan escreve no Twitter, Tiba estava na Turquia desde 2017, quando recusou regressar de umas férias em família.

Segundo disse à AFP a activista dos direitos humanos Hanaa Edwar, gravações áudio atribuídas à jovem mostram que “ela deixou a sua família porque era alvo de abusos sexuais por parte do irmão”. O Observatório Iraquiano para os Direitos Humanos confirma esta versão.

“O meu irmão atacou-se e vocês dizem-me para ter calma?”, afirma a voz atribuída a Tiba numa gravação partilhada nas redes sociais, onde parece estar a falar com o pai.

O porta-voz do Ministério do Interior diz que a polícia foi avisada sobre os problemas de Tiba com o pai, que não apoiava a sua decisão de viver sozinha na Turquia, e explica que agentes de uma unidade dedicada a “questões sociais” chegaram a dirigir-se a casa dos pais de Tiba, na província de Diwaniya, no Sul do Iraque, para “resolver a disputa familiar de forma definitiva”. “No dia seguinte, fomos surpreendidos com a notícia da sua morte às mãos do seu pai, como ele admitiu na sua confissão inicial”, descreve.

Tiba foi morta na noite de 31 de Janeiro para 1 de Fevereiro.

“Até que as autoridades iraquianas adoptem legislação bastante sólida para proteger as mulheres e as raparigas da violência de género, vamos continuar a ser testemunhas de assassínios tão terríveis como o de Tiba Ali”, reagiu a directora adjunta da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e o Norte de África, Aya Majzoub.

A activista critica o Iraque por continuar sem criminalizar a violência doméstica “apesar de um aumento das denúncias de casos por organizações não-governamentais iraquianas”. Há dois anos, em plena pandemia de covid-19, a ONU alertou para um pico de relatos de violações, violência de maridos sobre as suas mulheres, auto-imolações e ferimentos auto-infligidos por causa de violência doméstica e assédio sexual de menores, entre outros crimes”, sublinhando a urgência em fazer aprovar a Lei Anti-Violência Doméstica.

“Escandalosamente, o código penal iraquiano ainda trata de forma demasiado tolerante os chamados ‘crimes de honra’, incluindo actos tão violentos como ataques ou até assassínios”, afirma Majzoub, explicando que continua ainda sem haver “um sistema de denúncia eficiente ou abrigos que ofereçam protecção a mulheres e meninas”.

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