Cancro do estômago e da mama: equipa portuguesa aperta o cerco a mutações hereditárias
Da equipa de Carla Oliveira chegam avanços científicos sobre dois cancros hereditários. Um do estômago, outro da mama. Que mutações genéticas herdadas vão resultar nestes cancros? Há novas respostas.
Sabe-se há duas décadas que um tipo de cancro do estômago – o cancro gástrico difuso hereditário – está associado a mutações num gene específico. É o gene CDH1. Entre as mais de mil mutações já descritas para esse gene, uma parte é benigna e outra parte está classificada como causadora, ou potencialmente causadora, de cancro. No entanto, continuam a desconhecer-se os efeitos de um outro grande grupo de mutações neste gene. Estas últimas mutações genéticas chamam-se “variantes de significado incerto” – e é dentro deste lote que uma equipa internacional coordenada pela cientista Carla Oliveira identificou agora as mutações que não aumentam o risco de cancros associados à síndrome do cancro gástrico hereditário de tipo difuso. Fecha-se, cada vez mais, o cerco em torno do grupo de mutações genéticas a que temos de estar atentos.
Pelo menos a partir deste trabalho, que divulgamos este sábado, Dia Mundial do Cancro, o novo lote de mutações apontadas pela equipa de Carla Oliveira, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto, passou a ter um “significado certo” no que diz respeito a esta síndrome relacionada com dois tipos de cancro: o cancro gástrico difuso hereditário, que lhe dá o nome, e o cancro da mama lobular hereditário. Já explicaremos cada um destes tipos de cancro.
Ter esta nova informação é uma questão de vida ou morte. Ou, nas palavras de Carla Oliveira, “tem uma consequência enorme na vida das pessoas”. A cientista portuguesa tem em mente o facto de o cancro gástrico difuso hereditário ser fatal em pessoas muito jovens – antes dos 50 anos, normalmente na terceira década de vida, ou até antes, enquanto o cancro gástrico esporádico costuma surgir pelos 50 ou 60 anos.
Se os homens portadores de algumas das mutações no gene CDH1 têm um risco elevado de vir a ter cancro gástrico em idade jovem, nas mulheres a esse risco junta-se ainda o cancro da mama lobular. Este cancro da mama, que surge depois dos 40 ou 50 anos, afecta praticamente só as mulheres, uma vez que ocorre numa estrutura feminina da mama, os lóbulos, que os homens têm muito atrofiados.
As recomendações clínicas passam não apenas por uma vigilância apertada para o resto da vida, como pela remoção do estômago e das mamas geralmente depois dos 18 anos, mesmo sem sinais de doença, como forma de profilaxia. “Mas temos de ter a certeza de que se está a fazer a coisa certa.”
Uma síndrome que causa cancros
Vejamos primeiro o gene. O CDH1 comanda o fabrico de uma proteína, a caderina-E, que se encontra na membrana das células. Ela mantém a ligação entre as células do epitélio, o tecido que reveste a superfície externa do corpo (como a pele) e a superfície interna de várias cavidades (como o estômago). O epitélio é composto por camadas de células bem organizadas, que precisam de estar coladas umas às outras. A caderina-E mantém assim o epitélio ligado, é uma molécula dita “de adesão”.
Se a certa altura as duas cópias do gene CDH1 tiverem mutações perniciosas, pode começar a não haver sequer a produção da proteína caderina-E, o que conduz ao aparecimento do cancro gástrico de tipo difuso. As células cancerosas surgem desagregadas umas das outras.
Mas enquanto uma das cópias do gene funcionar normalmente (herdamos uma cópia de cada um dos nossos pais), consegue-se compensar a função da cópia herdada com mutações. Pode dar-se a situação de algum factor externo originar mutações perniciosas na cópia normal do gene numa célula, como uma agressão ambiental. Em resultado disso, essa cópia do gene pode perder por completo a sua função. “E se essa célula viver e começar a dividir-se, passado um tempo acumulam-se muitas células destas e dá um cancro”, explica Carla Oliveira.
Pensa-se que 90% de todos os cancros do estômago são esporádicos – ou seja, não são hereditários – e cerca de 30% de todos eles são de tipo difuso. Nos restantes 10% verifica-se “agregação familiar”: várias pessoas da mesma família desenvolvem cancro gástrico, frequentemente do mesmo tipo, que pode ser espoletado por factores ambientais (partilha da mesma alimentação e dos mesmos hábitos), ou por factores hereditários. Um terço destes 10% serão cancros do estômago muito provavelmente hereditários. “É uma síndrome muito rara. Só que, quando aparece, é mortífera”, refere a investigadora.
Em 1998, a equipa de Parry Guilford, na Nova Zelândia, percebeu o que levava a que em certas famílias houvesse uma agregação de cancros gástricos de tipo difuso: tinham mutações no gene da caderina-E transmitidas de geração em geração nessas famílias. O gene da caderina-E era, pela primeira vez, associado ao cancro gástrico hereditário. Embora já se conhecessem mutações nesse gene em cancros gástricos difusos esporádicos, foi em 1998 que se estabelecia uma associação entre alterações genéticas no CDH1, com as quais já se nasce, e o aparecimento daquele tipo de cancro.
Sem estômago, sem cancro
Logo no ano seguinte a esta descoberta juntou-se um consórcio internacional de cientistas, que incluía vários portugueses, como Carla Oliveira e o então seu orientador de tese de doutoramento, Carlos Caldas, da Universidade de Cambridge, bem como Fátima Carneiro e Raquel Seruca (que morreu em 2022), ambas da Universidade do Porto. Esse consórcio de cientistas, cuja criação foi liderada por Carlos Caldas, emitia uma recomendação que parecia, à primeira vista, muito radical. Mesmo sem sintomas de cancro, aos portadores dessas mutações hereditárias do gene da caderina-E devia ser oferecida a possibilidade de retirarem todo o estômago, para prevenir o aparecimento de uma doença grave.
Desde 1999, o Consórcio Internacional de Ligação Genética do Cancro Gástrico (IGGLC, na sigla em inglês) já publicou quatro conjuntos de critérios clínicos relativos ao gene CDH1 e a esta síndrome – em 1999, em 2010, 2015 e 2020. Nesta última revisão incluiu-se o cancro da mama lobular, que representa 10% dos cancros da mama em geral.
“Dado o risco elevado de cancro dos portadores de variantes patogénicas do CDH1, ou provavelmente patogénicas, as orientações actuais recomendam uma vigilância intensa a nível gástrico e da mama, gastrectomia profiláctica nos homens e nas mulheres, e mastectomia opcional nas mulheres, depois de aquelas variantes terem sido encontradas numa família ou num indivíduo com uma história relevante de cancros nestes órgãos”, lê-se num artigo científico, na revista Lancet Oncology, que divulga os novos resultados da equipa de Carla Oliveira.
A investigadora acrescenta: “Como é impossível prever em que idade um portador da mutação desenvolverá cancro, e como não existem tratamentos eficazes para estes cancros, estas opções profilácticas, apesar de drásticas, são as melhores.”
Portanto, o gene CDH1 é hoje um velho conhecido de pacientes, cientistas, médicos e de laboratórios de testes genéticos envolvidos no diagnóstico da designada “síndrome do cancro gástrico difuso hereditário”, que afecta cerca de 50 mil pessoas por ano em todo o mundo.
Dúvida: retirar órgãos, ou não?
“As dúvidas que persistem na clínica é o tipo de mutações no gene que estão efectivamente associadas à doença e que criam maior risco de doença”, resume Carla Oliveira. “Nos testes de diagnóstico identificam-se muitas mutações no gene CDH1 e a questão é: quais as alterações que predispõem para esta síndrome? É preciso distinguir aquelas que são causadoras de doença daquelas que não são causadoras de doença.”
Se já existir uma história familiar que encaixe nos critérios clínicos desta síndrome, os médicos costumam pedir um teste genético ao CDH1. O resultado laboratorial indicará se as variantes genéticas encontradas predispõem (ou não) para a doença. Tal implica que, à partida, já tenha de estar definido se essas variantes genéticas são causadoras, ou potencialmente causadoras, de cancro. O médico interpretará depois o resultado em função do contexto de cada pessoa.
“Se uma variante for benigna ou de significado incerto, não se faz nada”, explica Carla Oliveira. “Imagine que uma variante não é bem classificada ou há dúvidas sobre essa variante, o médico não vai tirar os órgãos às pessoas, se não tiver a certeza de que as variantes são causadoras de doença”, explica a investigadora. “Há um grupo de variantes em que não podemos dizer se são benéficas, patogénicas ou potencialmente patogénicas. Esse é o maior grupo de todas as variantes, que são as variantes de significado incerto e que não se sabe o que fazem.” Por se desconhecer o papel que têm, a maior parte das variantes genéticas nem vem mencionada nos relatórios de diagnóstico dos laboratórios de análises, explica ainda Carla Oliveira.
O objectivo da equipa era conseguir fazer destrinças nessa amálgama de variantes de significado incerto. Para tal, analisaram-se os dados de 854 portadores de 398 variantes raras no gene CDH1, bem como dos seus familiares (1021 familiares).
Este trabalho envolveu cientistas de 29 instituições de dez países europeus, que recolheram a informação de testes genéticos e de dados clínicos disponíveis na Rede Europeia de Referência de Síndromes de Risco de Tumores (ERN-Genturis), entre Outubro de 2018 e Setembro de 2022. De Portugal, entre outras instituições, participaram o Centro Hospitalar Universitário de São João, a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, o Instituto de Oncologia do Porto, o Centro Integrado de Cancro do Porto Raquel Seruca, a empresa GenoMed e o Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra.
Depois, a equipa dividiu as famílias portadoras de variantes de significado incerto em dois grupos. Num grupo, estavam as famílias portadoras de um tipo de mutações genéticas que trocam apenas uma única “letra” da molécula de ADN e que, neste caso, resultam na troca de um único aminoácido da proteína codificada pelo gene CDH1. Estas mutações genéticas pontuais, que não destroem a proteína da caderina-E, chamam-se “mutações missense”. Noutro grupo, estavam as famílias portadoras de variantes genéticas que eliminam completamente a função e a presença da caderina-E.
“Desta forma, conseguimos perceber que cancros aparecem em cada uma das famílias e qual o risco nestes dois tipos de famílias”, salienta Carla Oliveira.
Eis o resultado, publicado na revista Lancet Oncology, cujo primeiro autor é o investigador espanhol José Garcia-Pelaez, também do i3S: “As variantes que eliminam a proteína aumentam o risco de cancro do estômago difuso e de cancro lobular da mama. Para as outras variantes missense não se encontrou uma associação com o desenvolvimento destes dois tipos de cancro”, explica Carla Oliveira.
“Pudemos provar que as variantes que trocam um aminoácido por outro não estão associadas aos dois cancros que conhecemos que ocorrem nesta síndrome. Não vimos nenhum risco aumentado para o cancro do estômago difuso hereditário e o cancro lobular da mama”, realça ainda a investigadora. “Isto tem uma consequência enorme na vida das pessoas: quando uma pessoa tem uma variante que elimina a proteína, é submetida à remoção de órgãos. E essa pessoa é vigiada para o resto da vida.”
E não terão as variantes do tipo missense risco para outros cancros? “Não podemos dizer peremptoriamente que não causam cancro. Podem ser de significado certo [a partir de agora] para a síndrome do cancro gástrico difuso hereditário, mas continuam de significado incerto para outras doenças. Não estudámos isso.”
Três novos critérios clínicos
Os novos resultados têm já implicações ao nível do teste genético da caderina-E e da profilaxia, porque clarificaram, por um lado, quais são as mutações com risco maior para a síndrome de cancro gástrico difuso hereditário e os tipos de cancro mais prevalecentes em quem tenha essas mutações e, por outro lado, as mutações que não são preocupantes. “Este artigo demonstra formalmente que não se pode ter a mesma estratégia profiláctica nas famílias que têm variantes de significado incerto, em particular as variantes que trocam um aminoácido por outro”, diz Carla Oliveira. Neste último caso, não há indicação para retirar os órgãos.
Mais: “Tanto quanto sabemos, mostrámos, pela primeira vez, que o cancro lobular da mama tem a maior associação positiva com variantes patogénicas ou provavelmente patogénicas do CDH1, seguindo-se o cancro gástrico difuso e o cancro gástrico”, refere o artigo científico. “Outros tipos de cancro – como o cancro da mama ductal, cancro dos ovários e cancro colorrectal – foram extremamente raros nas famílias portadoras de variantes patogénicas ou provavelmente patogénicas, não mostrando nenhuma prova de associação com a presença [dessas variantes].” “Estes resultados apoiam a exclusão destes tipos de cancro do espectro dos cancros associados às variantes patogénicas ou provavelmente patogénicas do CDH1”, acrescenta o artigo.
Assim, desta investigação surge ainda a proposta de incluir três novos critérios clínicos, perfazendo agora um total de 11, para facilitar a identificação de famílias em risco através do teste genético, e que, de outra forma, poderiam passar debaixo do radar. “Permite-nos repensar os critérios clínicos para o teste genético, no sentido de melhorar a gestão clínica de famílias portadoras destas variantes”, diz José Garcia-Pelaez, em comunicado. “Permite-nos propor critérios clínicos mais assertivos que maximizam a identificação de famílias em risco para esta síndrome”, complementa Carla Oliveira.
Vejamos os três novos critérios clínicos propostos para um teste ao gene da caderina-E, que reforçam o risco de cancro lobular da mama, e que serão validados na próxima reunião do Consórcio Internacional de Ligação Genética do Cancro Gástrico, no Porto na Primavera de 2024. Primeiro critério novo: haver duas ou mais pessoas da família com cancro da mama, uma delas com cancro da mama lobular confirmado. Segundo: ter um cancro da mama lobular sem história familiar antes dos 55 anos. E, terceiro, ter uma história familiar de cancro do estômago e da mama e um dos cancros estar confirmado como cancro da mama lobular.
Em suma, diz Carla Oliveira sobre o estudo que pode ajudar as famílias a tomar decisões mais informadas: “Permitiu encontrar três critérios clínicos a mais, principalmente em famílias com cancro lobular da mama, com ou sem cancro do estômago, e agora permite [nessas situações] que os médicos testem também o gene CDH1.” Para a cientista, as implicações não são apenas na prevenção individual: “Estamos a falar de uma síndrome de cancros hereditários, ou seja, que tem implicações familiares, afectando os doentes e, com grande probabilidade, também os seus familiares de sangue.”
Mas se a caderina-E é fundamental para manter todo o tecido epitelial bem ligado, por que razão as mutações perniciosas não resultam noutros cancros além dos do estômago e da mama mencionados? “No mundo inteiro, essa é a pergunta de um milhão de dólares”, responde Carla Oliveira, expondo em seguida a “hipótese mais provável”, ainda que “muito crua”. Há células que, ao perderem a caderina-E, não aguentam e morrem. Se morrem, já não se podem tornar cancerosas. Já as células que se aguentam vivas, apesar da falta da caderina-E, podem vir a resultar em cancro, como o do estômago difuso hereditário e o da mama lobular. “Os tecidos aguentam-se vivos, apesar da falta de caderina-E, e dão uma percentagem dos cancros.”