O Paul do Taipal, uma Zona de Protecção Especial para a Avifauna (isto é, as aves que ocorrem na região), está em vias de ter um passadiço, mas as obras de construção pararam esta semana. O motivo: o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) não permite que decorram durante o período de nidificação dessa mesma avifauna (entre o início de Fevereiro e o final de Junho).
Alguns ambientalistas estão a aproveitar o momento para voltarem a contestar o projecto, uma iniciativa da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (CMMV) que, argumentam, poderá provocar uma “debandada brutal” das espécies de aves aquáticas que o paul alberga.
“O passadiço vai passar, num dos seus sectores, muito perto da água. O Paul do Taipal, que é [reconhecido como sendo] uma zona húmida de importância internacional [Sítio Ramsar 2001], acolhe aves aquáticas que, quando virem a aproximação humana, vão fugir”, diz ao PÚBLICO David Rodrigues, professor e investigador da Escola Superior Agrária de Coimbra e um dos principais opositores.
Esta luta não é de hoje. Associações ambientalistas como a Milvoz, organização não-governamental (ONG) dedicada à preservação do património natural de Coimbra (distrito a que o Paul do Taipal pertence), andam a alertar para os possíveis perigos do passadiço há bastante tempo.
“O problema é que [ele] passa mesmo junto à margem dos lagos que constituem o refúgio mais importante, particularmente para a comunidade de anatídeos [família de animais que inclui cisnes, gansos e patos]”, disse ao PÚBLICO Manuel Malva, presidente da Milvoz, no final de 2021. “Isto é querer colocar as pessoas a verem os animais quase como se estivessem num zoológico, mas as aves não vão tolerar isso”, acrescentou então.
Agora, novamente ouvido pelo PÚBLICO, o biólogo retoma a conversa. “O Paul do Taipal, sendo uma zona pouco fragmentada ou perturbada, acolhe espécies que são de relevância nacional e internacional, por terem um estatuto de conservação pouco favorável. É justamente devido à ausência de perturbação humana que estas espécies estão lá”, frisa, dizendo que estes animais têm “distâncias de fuga bastante largas”.
A distância de fuga de uma ave é a distância a partir da qual ela levanta voo perante a aproximação de uma pessoa, por sentir que é uma ameaça. Muitas das aves que o Paul do Taipal acolhe são espécies com “elevada sensibilidade à figura humana”, diz Manuel Malva, afirmando que, no sector mais “crítico” do passadiço, as distâncias de fuga “não são minimamente respeitadas”.
“Inevitavelmente, algumas daquelas espécies mais vulneráveis abandonarão a área. Será uma debandada brutal”, afirma. Tanto Manuel Malva como David Rodrigues alegam que, com as obras, há um declínio populacional já em curso.
Faltou fazer análise de incidências ambientais, acusa Milvoz
Em Julho de 2022, a Milvoz e a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) tentaram acabar imediatamente com a construção do passadiço, através da interposição de uma providência cautelar. “Inicialmente, o tribunal concedeu mérito a essa acção”, o que levou a uma interrupção momentânea dos trabalhos, mas depois “a sentença não deu provimento à providência cautelar”. Porquê? As ONG não terão conseguido demonstrar que a continuação das obras levaria a “consequências graves” para a fauna do paul, explica a Milvoz num comunicado de imprensa enviado ao PÚBLICO.
“Na prática, o tribunal considerou que a SPEA e a Milvoz teriam de provar cabalmente as consequências irreversíveis, algo que só pode ser feito” com uma “análise de incidências ambientais”, pode ler-se no mesmo comunicado.
Manuel Malva afirma que cabia ou à CMMV, enquanto responsável pelo projecto, ou ao ICNF, enquanto instituto responsável pela conservação da natureza a nível nacional, fazer uma análise de incidências ambientais. Era não só sua responsabilidade, como sua “obrigação”, “sendo o paul uma área classificada”, refere.
Ouvido pelo PÚBLICO, o ICNF diz que, na sua actual redacção, a lei estabelece a necessidade de fazer esta análise quando se trata de “acções ou projectos susceptíveis de afectar significativamente um Sítio da Rede Natura 2000” — coisa que o Paul do Taipal é, por ser uma Zona de Protecção Especial para a Avifauna.
O ICNF “emitiu parecer favorável condicionado” ao projecto por considerar que este “não é susceptível de afectar o Paul do Taipal de forma significativa”, graças às “medidas de minimização dos efeitos negativos” que o projecto prevê e às “condicionantes” estabelecidas pelo ICNF no seu parecer.
O instituto refere ser “importante sublinhar” que: as obras são executadas fora do período de nidificação da avifauna; “serão instalados painéis informativos ‘avisadores’”, que darão conta das regras de acesso e normas de conduta dos visitantes; a entrada dos mesmos será monitorizada, através da instalação de um “sistema para contagem de acessos em tempo real”; e, ainda, “a concepção do traçado do percurso permite, sempre que necessário, o seu seccionamento e a interdição do acesso a zonas mais sensíveis e/ou em determinadas épocas do ano”.
“A proposta de acesso condicionado do projecto é colocar placas a referir ‘acesso interdito’... É de quem não sabe o que se passa nas áreas classificadas”, critica David Rodrigues, que diz já ter estado presente em pelo menos duas reuniões com Emílio Torrão, presidente da Câmara de Montemor-o-Velho, para discutir formas de alterar ligeiramente o projecto e, assim, reduzir os supostos impactos ambientais mais significativos.
Segundo o professor e investigador da Escola Superior Agrária de Coimbra, a SPEA e a Milvoz estiveram presentes na segunda reunião. A câmara e o ICNF não aceitaram as sugestões propostas pelas associações ambientalistas, que depois disso interpuseram a sua providência cautelar, conta David Rodrigues — que diz ter “feito os possíveis” (inclusive expor o caso ao Presidente da República) para travar a obra.
“A ideia do passadiço era tornar a visitação [do paul] mais fácil para o cidadão comum. Acho muito bem: as populações locais devem conhecer e saber valorizar as áreas protegidas que temos. Mas há zonas que têm condições para serem visitadas e outras que não”, afirma.
Este passadiço “não é para passear”, diz presidente da câmara
Emílio Torrão, presidente da câmara de Montemor-o-Velho, diz ao PÚBLICO que o passadiço — que faz parte de um projecto maior de observação de aves, anunciado pela autarquia em Junho de 2021 —, “não é para passear”. “É para observar aves. O acesso será condicionado. Teremos vigilância e haverá um conjunto apertado de regras de segurança”, diz, referindo ainda que a CMMV está “disponível para colaborar com todos os investigadores, com vista a apertar ainda mais as medidas de protecção”, se necessário.
Quando a autarquia anunciou o seu projecto de observação de aves no Paul do Taipal, que contempla a construção do passadiço, afirmou que a ideia é este fazer a ligação entre os seus observatórios, desde os que já existem a um outro que a câmara deseja construir. O município prometeu minimizar “o contacto com a fauna e flora existentes”.
“Eu estive lá com os trabalhadores. As espécies andam a três, quatro metros deles. Não levantam voo”, diz Emílio Torrão, acrescentando por último que “os passadiços estão a ser construídos em cima de um caminho público”. “As pessoas já lá andavam. Só estamos a pôr um passadiço em madeira para que as pessoas não se sujem e possam andar comodamente.”
“É verdadeiro que o passadiço será, ainda que apenas parcialmente, implantado em cima de um caminho”, refere Manuel Malva. “No entanto”, contesta, “esse caminho remonta ao passado agrícola antes da existência do próprio paul”.
Quando foi feita a estrada nacional 111, que liga Montemor-o-Velho à Figueira da Foz, ela teve de ser, na parte que hoje corresponde à extensão do paul, “construída a uma cota mais elevada, porque aquela zona é um vale inundável”, conta o biólogo. “Se fizessem a estrada ao nível do terreno, havia o risco de ficar intransitável no Inverno, com a chuva.” Então, “foi preciso subir, fazer um aterro em forma de cordão para elevar a estrada”. Isso constituiu um obstáculo ao normal escoamento da água. “Alterou-se a dinâmica hídrica e todos os campos [agrícolas] a montante acabaram depois por ficar alagados”, diz.
“Desde então”, continua, “a área foi abandonada, pois o cultivo agrícola ficou inviabilizado”, e “evoluiu” para o cenário de zona húmida que hoje compreende o Paul do Taipal. “Esse caminho a que o presidente da câmara se refere não só está alagado boa parte do ano, como se encontrou, durante anos a fio, completa e absolutamente intransitável, totalmente cerrado por vegetação densa. Referir que esse caminho era já frequentemente trilhado por pessoas, coisa que [Emílio Torrão] tem vindo a fazer em diversas circunstâncias, não corresponde à verdade”, defende.
Sobre o facto de Emílio Torrão afirmar que o acesso ao passadiço será condicionado, Manuel Malva diz o seguinte: “A designação do projecto da câmara é ‘Birdwatching [observação de aves] no Paul do Taipal’, pelo que penso que o passadiço estará efectivamente mais talhado para esse nicho. Mas isto apenas conceptualmente. Na prática, poderá ser bem diferente.”
O Paul do Taipal alberga populações de aves como, por exemplo, o pato-trombeteiro, o arrabio, o pato-real e a marrequinha-comum.