Um ano de Lei de Bases do Clima: onde pára a emergência climática?

Portugal foi dos primeiros países a avançar com um diploma que consagra na lei metas de redução de emissões e vincula o Governo a medidas de acção climática. Mas ainda há muito por fazer.

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Um dos prazos que termina esta quarta-feira é para a publicação dos chamados “orçamentos de carbono” - que indicam o limite do volume total de emissões por sector - para 2023-2025 Rui Gaudencio

A Lei de Bases do Clima foi aprovada a 31 de Dezembro de 2021 e entrou em vigor há precisamente um ano, a 1 de Fevereiro de 2022. "A Lei de Bases do Clima reconhece a emergência climática, mas não há emergência em aplicá-la", lamenta a associação ambientalista Zero num comunicado que critica o atraso na execução dos compromissos assumidos no diploma. Apesar de alguns avanços e passos em frente, ainda há muito da lei por cumprir.

O texto promulgado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, assume “objectivamente a situação de emergência climática” e estabelece-se que um clima estável é património da Humanidade (tornando-se o primeiro país do mundo a fazê-lo). "A Zero tem-se desdobrado em esforços para perceber o estado dos trabalhos relativos à regulamentação e aplicação da lei, e constata que pouco ou nada evoluiu", referem os ambientalistas que também aguardam impacientemente pela constituição do Conselho de Acção Climática, de iniciativa parlamentar.

Num balanço sobre este primeiro ano do instrumento legal que pode ser decisivo na luta climática feita em Portugal, o PÚBLICO destaca quatro sucessos e cinco das tarefas por cumprir. A aplicação desta lei é necessária para que Portugal cumpra com o compromisso assumido de "alcançar a neutralidade climática antecipadamente em 2045".

(+) Um sinal positivo de mudança

O discurso não é tudo, mas é um passo importante. A Lei de Bases do Clima suscitou o “espanto de muitos países europeus”, que não pensavam que Portugal fosse um dos primeiros a avançar com um diploma que consagra na lei os objectivos de redução de emissões de gases de efeito de estufa e vincula o Governo a medidas de acção climática, explica a bióloga Maria Amélia Martins Loução, presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia e professora catedrática de ciências da Universidade de Lisboa.

Para o deputado socialista Ricardo Pinheiro, coordenador do grupo parlamentar na Comissão de Energia e Ambiente, o diploma prova a “aplicabilidade” da transição climática, mostrando passos concretos no caminho para a mitigação de emissões e adaptação do território que não deixa de fora, recorda, a “geração de riqueza” para a economia. Já o deputado Bruno Coimbra, coordenador pelo PSD naquela comissão (e que presidiu ao grupo de trabalho que trabalhou sobre o diploma), recorda que esta "matriz para a política climática" reflectiu um "consenso generalizado sobre esta problemática", mas sublinha que é preciso olhar também para os outros regulamentos que colocam as intenções em prática.

A Lei de Bases do Clima veio reforçar outros instrumentos que foram criados nos anos anteriores, como o Plano Nacional para a Energia e Clima (PNEC) 2021-2030 e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC 2050).

(+) O Estado dá o exemplo

Para Susana Militão, da associação ambientalista Zero, um dos pontos da Lei de Bases que tem mostrado sinais positivos é a integração de medidas de mitigação a nível do Estado. Susana Militão dá o exemplo dos avanços na estratégia nacional de compras públicas ecológicas, que esteve até meados de Janeiro em consulta pública. Trata-se de uma estratégia que permitirá “minimizar as compras públicas que contribuam para a pegada ecológica”, explica.

Isto a par do Programa de Eficiência de Recursos na Administração Pública para o período até 2030 (ECO.AP 2030), aprovado em Novembro de 2020, que incentiva a melhoria de eficiência energética e de outros recursos nas actividades do Estado.

Outro exemplo, diz Susana Militão, é a revisão da Directiva Ambiental para a Defesa Nacional e também a nova Estratégia da Defesa Nacional para o Ambiente, anunciada pela ministra da Defesa, Helena Carreiras no início do ano, "cujos trabalhos de elaboração já se encontram em curso".

(+) Orçamento verde

A Lei de Bases do Clima reconhece como importante a “orçamentação verde”, que tem como objectivo “reorientar o investimento público, o consumo e a tributação para prioridades ecológicas em vez de subsídios prejudiciais”.

Susana Militão, da Zero, destaca o facto de, pela primeira vez, ter havido uma fatia “verde” no Orçamento do Estado para 2023, com 2,5% das despesas dedicadas à acção climática.

Das promessas da Lei de Bases do Clima, contudo, ficou esquecido o “IRS Verde”, que poderia trazer benefícios fiscais aos cidadãos, mas outros pontos foram contemplados, como o reforço de apoios para a mobilidade ciclável. O deputado socialista Ricardo Pinheiro defende que a aposta no IRS Verde deveria ser maior, já que pode ser um “instrumento importantíssimo” para valorizar a acção climática do ponto de vista fiscal.

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PAULO PIMENTA

(+) Políticas climáticas regionais e locais

Existem já alguns municípios a dar os primeiros passos nos seus Planos Municipais de Acção Climática, apesar de o prazo ser Fevereiro de 2024. Loulé foi a primeira autarquia a aprovar o seu plano, logo em Fevereiro de 2022. Esta proactividade é um bom sinal, nota Susana Militão, que acrescenta que a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) já lançou recomendações para ajudar os municípios neste percurso. As sementes estão lançadas para que, daqui a um ano, uma boa fatia dos municípios tenha o seu plano adaptado: “cada realidade local é própria, cada município tem que pensar nas suas necessidades”, explica Susana Militão.

O deputado Ricardo Pinheiro, do PS, nota que também a nível das políticas europeias existem incentivos à mobilização das autarquias para a acção climática, nomeadamente através das condições de acesso aos fundos europeus dos Programas Operacionais Regionais (Portugal 2030). O Pacto Ecológico Europeu, aliás, implica que uma cada vez maior percentagem de fundos europeus - incluindo os do PRR - seja entregue apenas quando os projectos respeitem as metas de redução da pegada carbónica.

(-) “Inércia” na execução da lei

Um dos grandes objectivos que deveria ter sido cumprido no prazo de um ano desde a publicação da lei é a criação de um Conselho de Acção Climática, uma entidade independente à qual caberá emitir pareceres sobre as medidas de acção climática do Governo, Orçamento de Estado e demais instrumentos previstos na lei. A elaboração do regulamento sobre a eleição e funcionamento deste órgão cabe ao Parlamento, mas os projectos de lei ainda não começaram sequer a ser discutidos (um agendamento foi feito recentemente para a plenária de 8 de Fevereiro).

“Há muitas medidas que não são atribuídas a um organismo próprio”, lamenta Susana Militão, da Zero, o que cria uma indefinição de responsabilidades. Também a deputada Inês Sousa Real, porta-voz do PAN, identifica uma “ausência de regulação” dos instrumentos previstos na lei que deveriam ter sido operacionalizados já neste período.

“Há uma inércia na execução da lei”, defende a deputada ambientalista, que nota também a falta de uma “visão mais integrada”: neste primeiro ano, as medidas aplicadas foram “mais orçamentais do que estruturais”, diz, dando o exemplo do incentivo à aquisição de bicicletas.

(-) Informação escondida

Outra das grandes falhas do primeiro ano de aplicação da lei é não ter sido ainda lançado o Portal de Acção Climática, que vai reunir informações sobre as emissões de gases com efeito de estufa, as diversas metas climáticas e compromissos assumidos pelo país, estudos e bases de dados para que os cidadãos consigam compreender o caminho do país rumo à descarbonização e informação sobre como podem participar nesse percurso.

Neste momento, parte dessa informação consta, por exemplo, no site da APA, “mas o site não é muito fácil de navegar”, nota Susana Militão. Também para o deputado social-democrata Bruno Coimbra, é importante um portal que agregue a informação, de forma a facilitar o escrutínio das politicas públicas.

Um dos temas transversais da Lei de Bases do Clima é a participação dos cidadãos, seja no desenho de políticas, seja no feedback que podem dar a nível tanto local como nacional, mas continua a não existir informação sobre como os cidadãos podem dar o seu contributo para as políticas climáticas.

(-) Orçamentos de carbono ainda por publicar

Neste momento, sabemos a quantidade de CO2 que emitimos, mas falta uma informação essencial: quanto quer o Estado reduzir em cada um dos sectores nos próximos anos? Um dos prazos que termina esta quarta-feira é para a publicação dos chamados “orçamentos de carbono” - que indicam o limite do volume total de emissões por sector - para 2023-2025 (ou seja, incluindo este ano que já começou) e para o período entre 2025 e 2030. A Lei de Bases do Clima prevê que, depois da sua elaboração, seja emitido um parecer, no prazo de 20 dias, pelo Conselho de Acção Climática - que, recorde-se, ainda não existe.

Em termos de emissões, há outras questões em que os objectivos definidos na lei são contraditórios com as opções tomadas ao longo do último ano. A lei menciona - e bem - os transportes públicos, mas “esquecendo outros transportes, como barcos ou cruzeiros, que são poluentes e emissores”. A deputada Inês Sousa Real recorda ainda que foi necessário uma proposta de alteração ao OE2023 feita pelo PAN para que os jactos privados fossem incluídos da taxa de carbono na aviação.

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Plantação para a produção de óleo de palma daniel rocha

Há ainda a questão do novo aeroporto, em que Maria Amélia Martins-Loução continua a ver contradições: enquanto outros países “estão a pensar nos efeitos que os aviões têm” em termos ambientais, Portugal escolheu olhar para o assunto “do ponto de vista turístico”, mesmo numa altura em que ainda não existem soluções em termos de combustíveis “limpos” para a aviação.

(-) Óleo de palma - há mais de um ano por reduzir

Uma medida que estava prevista já no Orçamento do Estado para 2022, mas que não chegou a ser executada, era a "restrição da produção e comercialização de combustíveis ou biocombustíveis que contenham óleo de palma ou outras culturas alimentares insustentáveis, a partir de 1 de Janeiro de 2022".

Esta medida já estava prevista no Orçamento de Estado e "transitou" para a Lei de Bases do Clima, mas nem assim foi possível fazer acontecer - pelo contrário. “Já andamos três anos e não se avança”, lamenta Susana Militão, da Zero.

(-) Falta “visão abrangente” da neutralidade carbónica

Para a bióloga Maria Amélia Martins Loução, “a questão da neutralidade carbónica não é minimamente abordada” neste diploma. Ou seja, o plano tem um enfoque mais específico nas acções de mitigação das emissões de carbono e outros gases com efeito de estufa, mas reflecte pouco as preocupações com a conservação da natureza e biodiversidade que são importantes para a captura de carbono, para a adaptação dos territórios e para a preservação do planeta em geral.

Por exemplo, não fica bem resolvido o dilema entre reflorestar e conservar a floresta existente: é dada muita atenção à reflorestação de zonas queimadas, mas pouca à conservação das florestas actuais. A presidente da SPE não vê, por exemplo, “incentivos a sul do país”, onde a aridez e a desflorestação são problemas concretos. Também as zonas húmidas - “importantes sumidouros de carbono que estão péssimas em termos de saúde” - são esquecidas nas políticas de acção climática.

“Portugal tem sido um mau aluno no que diz respeito aos fundos comunitários no que diz respeito ao ambiente”, reforça Inês Sousa Real, que lamenta a falta de empenho nas medidas de adaptação do território, que passam pela conservação da biodiversidade.

Já não estamos em tempo de passear - “devíamos entrar em modo maratona” e aplicar as medidas com a abrangência necessária, avisa a bióloga Maria Amélia Martins-Loução. O problema, reconhece, é que ainda agora começámos e “já estamos cansados para maratonas…”