A gestão da Mata dos Medos é polémica e a culpa é do corte dos pinheiros
Em 2021, o corte de milhares de pinheiros-mansos na Mata Nacional dos Medos, em Almada, originou uma polémica que se reacendeu recentemente. Fomos fazer uma visita ao espaço.
O Sol brilha às 10h da manhã na Mata Nacional dos Medos. A meia hora de Lisboa está-se na companhia de um miradouro natural que é a exuberante arriba fóssil da Costa da Caparica, fica-se frente a frente com o oceano Atlântico e rodeado de muitos pinheiros-mansos. Eles são a causa desta visita, acedida pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que quis dar uma explicação sobre a gestão que está a ser feita naquela mata e que tem sido publicamente questionada.
O caso remonta a 2021, quando o abate de alguns milhares de pinheiros-mansos (Pinus pinea) na parte Sul da Mata Nacional dos Medos, num contexto de um projecto maior financiado por dinheiro da União Europeia através do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR), originou protestos de cidadãos e de organizações ambientalistas como a Acréscimo e a Zero – Associação Sistema Terra Sustentável.
A polémica chegou à Assembleia da República, através de questões trazidas por deputados do Partido Ecologista Os Verdes, em Dezembro de 2021. Além da necessidade do corte de pinheiros-mansos, foi questionado o destino da madeira que saiu daqueles cortes.
“A acção de restauro, conservação e valorização de habitats naturais compreende operações de desbaste de pinheiros-mansos com o objectivo de favorecer a melhoria das condições de crescimento para as árvores que ficam e a redução do ensombramento do sub-bosque, promovendo uma maior diversidade florística”, lê-se numa carta de resposta do Ministério do Ambiente e da Acção Climática do início do ano passado, onde se justifica o desbaste de entre 30 e 40% de pinheiros-mansos numa área de 50 hectares daquela mata, que faz parte da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica, nos concelhos de Almada e Sesimbra.
A carta também responde à questão sobre o destino final da madeira que foi cortada. “Os sobrantes de exploração foram, sempre que possível, destroçados e incorporados no solo”, lê-se. No entanto, parte do que sobrou não pôde ser integrado no solo, com o risco de o tornar excessivamente ácido. Por isso, “optou-se por remover alguns destes resíduos, garantindo o cumprimento das normas e regras fitossanitárias”.
Houve ainda uma pilha de madeira que não foi transformada em estilha e continua à espera de destino há mais de um ano, como o PÚBLICO pôde verificar no local. Na carta do Ministério do Ambiente explicava-se que esta “madeira com aproveitamento económico será alvo de venda em hasta pública”.
Queixa pendente
No entanto, estas respostas não satisfizeram a associação Acréscimo, que, em Maio de 2022, enviou uma carta-queixa à Procuradoria-Geral da República visando o ICNF. “A presente queixa decorre da suspeita, no mínimo, de gestão danosa em património público por parte da entidade gestora pública, o ICNF”, acusa a Acréscimo.
Para a associação, houve um abate injustificado de muitos pinheiros-mansos de “maiores diâmetros”, mesmo tendo em conta eventuais necessidades sanitárias. Por outro lado, “o material saído da Mata Nacional, em estilha ou em toros, não pôde deixar de produzir receita”, refere a associação, acrescentando que não se conhece os destinatários da “estilha ou toros da madeira” retirados da mata. E lança a pergunta: “Qual o montante da receita gerada pela comercialização de material lenhoso, muito embora não previsto em projecto submetido ao POSEUR?” No contexto de um projecto com financiamento do POSEUR, se houver uma receita obtida, esse dinheiro tem de ser devolvido.
De Maio de 2022 para cá, a Acréscimo não teve notícias sobre a queixa que apresentou. Há poucas semanas, a polémica foi retomada num artigo de opinião no PÚBLICO intitulado ICNF, facilitador de negócios?, de Paulo Pimenta de Castro, engenheiro silvicultor da Acréscimo, e de João Camargo, investigador em alterações climáticas e activista da associação Climáximo.
No texto, os autores querem saber se a venda em hasta pública foi concretizada ou não e voltam a questionar qual foi o destino da madeira que saiu da mata: “O concurso público criado para acções de desbaste e abertura de clareiras na Mata não previa a saída de madeira de pinheiro-manso, mas o seu estilhaçamento e deposição em solo arenoso. Porque desapareceu então a madeira? Houve fiscalização da operação entregue a privados pelo ICNF?”
“A ideia do artigo de opinião era espicaçar a questão”, admite ao PÚBLICO Paulo Pimenta de Castro. Uma das estratégias para isso foi aludir à “presença muito próxima de interesses imobiliários por parte do secretário de Estado que tutela o ICNF, João Paulo Catarino”, lê-se no artigo de opinião, que refere uma empresa detida em 50% por Paulo Catarino com actividade na Aroeira, perto da Mata Nacional dos Medos.
O objectivo foi atingido. Dias depois, houve uma resposta de Nuno Banza, presidente do Conselho Directivo do ICNF. “É para mim algo estranho que, mesmo tendo este tema sido já amplamente escrutinado e esclarecido pelo ICNF (…) eu veja construir uma narrativa que não passa de uma efabulação”, avança o responsável, num artigo que deu o título de Os Miseráveis, ou como romancear a realidade, mas com base na mentira!
Segundo Nuno Banza, o secretário de Estado que tutela o ICNF “não tem, nem teve rigorosamente nada a ver com este processo em concreto!” E quanto à acção de gestão feita naquela área, o responsável lança um “convite para visitarem a Mata Nacional dos Medos”. O PÚBLICO aceitou o convite.
Contra as dunas
Metade da paisagem da Mata Nacional dos Medos é fruto da mão humana. Houve uma necessidade de evitar o avanço das dunas em direcção a terrenos agrícolas e D. João V (1689-1750) mandou plantar pinheiros naquela região.
Quem caminhar pelos passadiços e trilhos da mata apercebe-se do solo arenoso que está por baixo. A palavra “medos”, neste contexto, deverá ler-se “médos”, que não é mais do que um “monte de areia, geralmente formado pelo vento, nas vizinhanças do mar”, aponta o dicionário Priberam. Ou seja, as dunas estão escondidas no próprio nome da mata.
Desde a ordem dada por D. João V, houve vários esforços de plantações de pinheiros (a maioria manso). A mais recente foi feita nos anos após o incêndio de 1983, que ocorreu na área Sul da mata, onde arderam 115 hectares de terreno e muitos pinheiros-bravos. E que agora sofreu a criticada intervenção. Mas o ecossistema da mata é muito mais do que os seus pinheiros.
Um dos valores que levaram a uma protecção especial foi o zimbro ou sabina-das-praias (Juniperus turbinata), cujos exemplares atingem, na Mata Nacional dos Medos, quatro ou cinco metros de altura. Não são os pequenos arbustos encontrados na grande maioria das áreas onde esta espécie está instalada em Portugal.
“Existem condições neste ecossistema que permitem que o zimbro se forme com este porte arbóreo”, explica Rui Pombo, engenheiro florestal e director regional de Lisboa e Vale do Tejo do ICNF, enquanto caminha pelos novos passadiços construídos na zona Norte da mata, que é mais húmida e mais rica em termos de biodiversidade.
O engenheiro florestal é o cicerone, mas Kelly Alberto, vigilante da natureza da paisagem protegida, Filipe Cuim, perito em gestão de fogo florestal e técnico superior do ICNF, David Gonçalves, chefe da Divisão de Projectos e Licenciamentos do ICNF, e Mariana Velez, consultora de comunicação que presta serviços ao ICNF, também acompanham a visita, ajudando a responder às questões que vão surgindo ao longo da caminhada.
Além dos zimbros, encontram-se na vegetação outras espécies vegetais endémicas, como a aroeira ou lentisco (Pistacia lenticus), o medronheiro (Arbutus unedo), o carrasco (Quercus coccifera), o espinheiro-preto (Rhamnus lycioides), o sanguinho-das-sebes (Rhamnus alaternos), além de outros arbustos e flores. É esta multiplicidade de espécies que dá sabor e traz complexidade ao coberto vegetal que fica ao nível dos olhos, principalmente num dia de céu azul, entre a luz e as sombras criadas pelos pinheiros, que se elevam altos na paisagem.
Habitat prioritário
Na página do ICNF, explica-se que a Mata Nacional dos Medos é um dos elementos mais significativos da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica. A mata foi classificada como Reserva Botânica em 1971 “devido ao valor do seu património florístico”, refere o instituto. Mas, para manter aquele nível de biodiversidade, é necessária uma gestão, defende Rui Pombo.
“O nosso habitat prioritário não é o ecossistema clímax, é o intermédio, anterior ao clímax. E temos de intervir para que o habitat prioritário se mantenha”, explica Rui Pombo, referindo-se à evolução que acontece nos ecossistemas ao longo do tempo, que vai substituindo a dominância de umas espécies por outras.
“Toda esta diversidade florística só existe se houver estas condições”, acrescenta o engenheiro florestal, referindo-se a parcelas onde o pinheiro-manso está espaçado, deixando conviver uma variedade de espécies vegetais que não crescem tanto.
O problema é que, em várias parcelas da mata, os pinheiros-mansos foram plantados numa grande densidade e, ao crescerem, criaram amplas áreas de sombra nos estratos mais abaixo, limitando o aparecimento de outras espécies e diminuindo a biodiversidade.
Um dos exemplos mais demonstrativos que o PÚBLICO observou foi numa estrada florestal que passa no meio da mata. De um lado, os pinheiros surgem mais espaçados e há uma quantidade de árvores e arbustos mais pequenos que constroem um nível mais baixo de vegetação, entre os quais zimbro de porte arbóreo. “Isto é o que se pretende para a Mata dos Medos, as árvores terem caído naturalmente e terem uma densidade óptima”, diz Rui Pombo, referindo-se aos pinheiros.
Mas do outro lado da estrada existe uma parcela de pinheiros-mansos altos, antigos, encostados uns nos outros, com pouca vegetação por baixo. Daria para correr por ali no meio.
“A mata foi toda plantada há mais de 100 anos e depois não teve as intervenções necessárias. O objectivo era uma mata de protecção”, explica o responsável. “Vai haver uma década em que os pinheiros vão morrer. Vamos deixar de ter esta imagem, que caracteriza a Mata dos Medos, e vamos esperar 30 a 40 anos para voltar a tê-la.”
Má comunicação
O projecto inicial de intervenção, que já vinha referido no Plano de Gestão Florestal 2013-2026 para a mata, definia a abertura de várias clareiras nas parcelas com pinheiros mais antigos, na parte Norte, além do desbaste mais geral, feito nas parcelas da parte Sul. A ideia das clareiras era possibilitar um crescimento faseado de pinheiros com as outras espécies endémicas daquela região.
Mas a contestação que houve em relação aos cortes fez com que o ICNF não avançasse com as clareiras, pelo menos para já. “Não conseguimos perceber o objectivo de todo o ruído feito aqui”, diz Rui Pombo. “Claramente temos de aprender a comunicar de uma forma mais eficaz a necessidade de intervenções.”
Os pinheiros que foram cortados na região Sul da Mata dos Medos, plantados ao longo da segunda metade da década de 1980, tinham mais de 30 anos. Inicialmente a plantação tinha sido feita com uma densidade alta para cobrir rapidamente toda aquela área e protegê-la. Já na altura previa-se que dali a umas décadas seria necessário haver o desbaste. Em 2003, houve uma primeira intervenção.
Para o trabalho ocorrido em 2021, o ICNF assinou com a Ambiflora – Serviços de Silvicultura e Exploração Florestal, Lda o contrato 123/2019/ICNF. Das várias empresas que foram a concurso, o instituto optou “pelo [contrato] economicamente mais vantajoso”, referiu Rui Pombo. A Ambiflora ficou responsável pelo corte selectivo de árvores, o controlo de espécies invasoras como as acácias e a gestão de habitats, tendo recebido 132.274,83 euros, avança o ICNF. Ao todo, foram cortadas “cerca de 3600 árvores” e ficaram “15.000”, adianta o engenheiro florestal.
Visitámos uma das parcelas onde o trabalho foi feito, junto ao Parque de Merendas da Aroeira. A vegetação herbácea já cresceu, mas ainda é possível ver as marcas deixadas pelas máquinas que andaram a cortar os pinheiros. Aqui e ali contam-se cepos cortados.
Antes da intervenção, era impossível atravessar aquele terreno, adianta Rui Pombo. “Do ponto de vista de biodiversidade, não tinha qualquer interesse”, refere o engenheiro florestal, admitindo que o “impacto do desbaste era chocante”. Mas o responsável acredita “que não será necessário fazer novas intervenções no futuro”. Ou seja, que a densidade de pinheiros que ficou vai permitir produzir a paisagem que se deseja para aquela área da mata.
Nova plantação
Em relação ao destino da madeira cortada, Rui Pombo explica que a madeira que a Ambiflora retirou da mata foi previamente estilhaçada devido às regras de segurança para evitar a propagação do nemátodo-da-madeira-do-pinheiro. “Embora não haja amostras positivas do nemátodo [na mata], o regulamento fitossanitário diz que é obrigatório que todo o substrato de exploração tenha de ser estilhaçado no local e tenha de ir para o destino autorizado”, avança Rui Pombo, adiantando que o ICNF não teve retorno económico do material escoado, já que isso era responsabilidade da empresa. “A única coisa que a empresa tinha de garantir era que o destino final [da madeira] era um receptor autorizado”, acrescenta.
“É preciso saber qual é o destino da madeira”, diz por sua vez ao PÚBLICO Paulo Lucas, da direcção da Zero. Apesar de a associação não ter estado envolvida na queixa, o responsável seguiu a polémica e defende a vigilância que está a ser feita ao instituto. “Queremos um ICNF forte no território. Todas a críticas que fazemos é para termos uma autoridade capaz.”
De acordo com os seis manifestos de exploração florestal emitidos no contexto da intervenção, o material que saiu da mata foi transportado para “destinos autorizados, localizados na zona de Setúbal, Poceirão e Montijo”, assegurou o responsável do ICNF.
Perto do parque de merendas está também a pilha de madeira que o Ministério do Ambiente referiu que seria vendida em hasta pública. A pilha resulta de árvores grandes que foram cortadas em vários locais e não puderam ser estilhaçadas pelo seu tamanho, justifica o engenheiro florestal, adiantando que o ICNF tentou fazer contactos para vender a madeira sem sucesso.
Agora, o instituto irá tentar integrar esta pilha com outra madeira obtida em intervenções feitas noutros locais para vender em hasta pública. Aconteça o que acontecer, “ela será retirada antes de Maio”, garante o responsável.
O próximo passo será a plantação de zimbro, lentisco e medronheiro para ajudar ao aumento de coberto vegetal naquelas áreas. O adensamento, que será feito por funcionários do ICNF, começará em 2023 e continuará em 2024. As plantas que vão ser usadas estão a crescer nos viveiros do ICNF a partir de sementes apanhadas na própria mata para garantir que estão adaptadas a este ecossistema, adianta Rui Pombo.
“Acredito nessa intenção, vamos ver”, diz ao PÚBLICO o biólogo Jorge Paiva. O perito fez uma visita técnica com a Acréscimo sobre questões de preservação da Reserva Botânica e, embora conceda que o instituto tem “pessoas capazes”, desconfia da sua capacidade de execução. “Toda a gente sabe que o ICNF não tem pessoal suficiente para fazer um trabalho válido. A culpa não é deles, é de vários governos. Foi uma delapidação durante vários anos.”